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domingo, 28 de fevereiro de 2010

SERTÃO: CASA DA INFÂNCIA




SERTÃO: CASA DA INFÂNCIA

NEUZA MACHADO



A Poética da Casa de Gaston Bachelard (A Água e os Sonhos) possibilita ao teórico da literatura, possuidor do conhecimento de como se interpretar um texto literário pelos princípios da fenomenologia, uma incursão/excursão ao Sertão Ficcional de Guimarães de Rosa. Suas primeiras narrativas, escritas sob o impacto da descoberta de um mundo sertanejo incomum, apresentam a parte externa, pitoresca, de um espaço geográfico, memorável, resgatado das impressões da infância. Entretanto, o sertão mineiro, como representação legítima da casa inesquecível do escritor, só começa a ser recuperado criativamente a partir de A Hora e Vez de Augusto Matraga, revelando seus recantos secretos, seus refúgios, seus abrigos. O narrador, nesta narrativa, já evidenciando uma mudança de perspectiva (saíndo da perspectiva horizontal para a perspectiva interativa, questionadora), recordando o sertão, auxiliado pela contribuição da matéria lírica, recorda a casa da infância daquele que o concebeu ficcionalmente, e é por isso que o escritor sertanejo, num determinado trecho, liberta-se do jugo do narrador experiente, para recordar a antiga morada. É seu passado inesquecível que se sobressai, quando se descontrola discursivamente, em sua narração dos acontecimentos que pautam a volta de Nhô Augusto ao Arraial do Murici. A volta do personagem representa o retorno das recordações de uma infância privilegiada. Por esta razão, observa-se o tom poético, o discurso estranho, diferente, o qual se verifica a partir da decisão de Nhô Augusto de regressar a seu arraial de origem. O ficcionista, sob a influência da consciência fervilhante, obriga o seu narrador do momento a partilhar de suas próprias emoções, nomeando os pormenores da caminhada e interagindo com os sentimentos inerentes a seu personagem ficcional.

O narrador informa que Nhô Augusto não percebia os rumos que tomava. Afirmo, desvinculando-me da constantemente modificada orientação analítico-estruturalista (com inovadora consciência interativa): o Artista literário do século XX não percebia os rumos que a narrativa tomava. Bachelard orienta-me: a casa — o sertão — faz o ficcionista devanear, faz seu narrador poetizar. Sertão inesquecível. Narrador - já agora pós-moderno - que não consegue esquecer o castelo intrigante e misterioso de seu heróico passado sertanejo, o qual permanece vívido em suas recordações. Valores verdadeiros de uma antiga realidade imaginosa. Não são os valores objetivos que contam. Contam mais os momentos marcantes da infância e adolescência vividos naquele lugar, os quais permaneceram indeléveis no íntimo do Artista. Narrador-Poeta ou Poeta-Narrador, ou simplesmente Poeta? Os poetas não delegam poderes, apenas sentem, recordam, devaneam, não transitam entre dois mundos diferentes, se encontram além da objetividade histórica. Por tais motivos, centralizei minha investigação sobre a poética da casa, ao interagir interpretativamente com a narrativa A Hora e Vez de Augusto Matraga, nos trechos que reproduzem a interferência da matéria lírica na criação ficcional do narrador.

Bachelard cita Jung em sua Introdução:

"Temos que descobrir uma construção e explicá-la: seu andar superior foi construído no século XIX, o térreo data do século XVI e o exame mais minucioso da construção mostra que ela foi feita sobre uma torre do século II. No porão descobriram fundações romanas e, debaixo do porão, acha-se uma caverna em cujo solo se descobrem ferramentas de sílex, na camada superior, e restos de fauna glaciária nas camadas mais profundas. Tal seria mais ou menos a estrutura de nossa alma" (Bachelard).

O sertão literário de Guimarães Rosa está nas bases da estrutura de vida do narrador, extensivo portanto às bases de estrutura de vida do ficcionista. O andar superior foi construído no século XX; o térreo (ligado ao sertão mineiro) data do século XVI, início da História do Brasil; mas, se houver uma observação minuciosa, será possível compreender que esse Sertão tem seu alicerce cravado na Era Medieval. Observando as camadas mais profundas, apreende-se uma origem sueva localizada numa fase pré-medieval de Portugal, em um tronco familiar bárbaro, cujo apelido (sobrenome) de família era Guimaranes.

Eis o depoimento de Guimarães Rosa ao crítico Lorenz:

"Para sermos exatos, devo dizer-lhe que nasci em Cordisburgo, uma cidadezinha não muito interessante, mas para mim, sim, de muita importância. Além disso, em Minas Gerais: sou mineiro. E isto sim é o importante, pois quando escrevo, sempre me sinto transportado para esse mundo: Cordisburgo. Não acha que soa como algo muito distante? Sabe também que uma parte de minha família é, pelo sobrenome, de origem portuguesa, mas na realidade é um sobrenome suevo que na época das migrações era Guimaranes, nome que também designava a capital de um estado suevo na Lusitânia? Portanto, pela minha origem, estou voltado para o remoto, o estranho. Você certamente conhece a história dos suevos. Foi um povo que, como os celtas, emigrou para todos os lugares sem poder lançar raízes em nenhum. Este destino, que foi tão intensamente transmitido a Portugal, talvez tenha sido culpado por meus antepassados se apegarem com tanto desespero àquele pedaço de terra que se chama o sertão. E eu também estou apegado a ele" (Guimarães Rosa).

O Sertão ficcional roseano simboliza a casa inesquecível do Artista Literário. Dentro desta casa íntima há um determinado Sertão que não se esquece, por isto ele diz a Lorenz, na Entrevista, que leva o sertão dentro dele e que o mundo em que vive é também o sertão. Sua literatura nasceu de sua vida íntima e sua verdade existencial se orienta através das recordações do sertão. A memória (matéria épica) é insuficiente para transmitir sentimentos que remontam a pré-fase da humanidade, inserida na alma de um único homem. Pelo prisma psicológico/filosófico de Gaston Bachelard (Poética do Espaço), a primeira morada será sempre a base de futuras recordações.

As primeiras vivências, mesmo aparentemente esquecidas, permanecem alojadas, armazenadas em íntimos compartimentos secretos. O interior desse sertão (sua intimidade, sua primeira morada) transparece por meio do olhar nostálgico de seu narrador. Se a narrativa, nas últimas seqüências, se processa mediante um discurso diferente do comumente usado para reproduzir a realidade, isto se dá graças à complexidade de se recordar de quem narra. A recordação (matéria lírica) é caótica e, pelo ponto de vista da criação, valiosa. Por estas razões, as imagens finais se encontram dispersas e, ao mesmo tempo, há um corpo de imagens, fervilhante, que as legitima no âmbito da ficcionalidade.

Seguindo ainda as teorizações de Bachelard, percebe-se que esse acúmulo de imagens (ou imaginação além dos limites) aumenta os valores da verdadeira realidade do sertão mineiro no sentido material. O sertão mineiro foi a primeira morada do escritor Guimarães Rosa, o Sertão literário roseano concentra as imagens dessa casa. No sertão da infância, antes de tomar para si as rédeas de sua própria proteção, ele foi um ser protegido. Foi ali que conheceu o calor do fogão a lenha e o aconchego do afeto familiar. Depois o mundo o envolveu.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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