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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

VI - CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESCRITOR, O NARRADOR E A NARRATIVA

NEUZA MACHADO


“Sabemos que a obra exige necessariamente a presença do artista criador. O que chamamos arte coletiva é a arte criada pelo indivíduo a tal ponto identificado às aspirações e valores do seu tempo, que parece dissolver-se nele, sobretudo levando em conta que, nestes casos, perde-se quase sempre a identidade do criador-protótipo”.[1]

Para Antônio Cândido, a obra de arte exige a presença do criador. No caso específico da arte literária, modalidade narrativa ficcional, alguns teóricos procuram separar artista e narrador, como, por exemplo, o francês Roland Barthes, estruturalista (sua primeira fase), quando diz que o narrador é personagem como outro qualquer, e que não se deve confundi-lo com o artista (citação repetida ad infinitum, nas Faculdades de Letras brasileiras, por alguns professores de teoria da literatura que não se preocupam com as devidas reciclagens, e que não param para pensar que o próprio Roland Barthes modificou seus pensamentos teóricos ao longo de sua carreira intelectual). Conscientemente, contrariando a assertiva do consagrado teórico francês (assertiva, como já disse, de sua primeira fase estruturalista), penso no narrador do século XX (incluindo os narradores de Guimarães Rosa a partir desta narrativa) também como personagem atuante, realçando-o como parte integrante do criador de narrativas ficcionais, pois nele se instala ou se desenvolve a face ficcional do escritor modernista.

Na obra em questão (A Hora e Vez de Augusto Matraga), há a presença do ficcionista Guimarães Rosa, homem nato do sertão mineiro (sertão rude), mas que alcançou honrarias no âmbito hierarquizante da sociedade. No entanto, há, com maior destaque, a presença do escritor-indivíduo do século XX, paradoxal e questionador, em conflito com valores que se opõem. Guimarães Rosa, desenvolvendo seus diversos talentos, posicionou-se positivamente diante da sociedade elitista, alcançando credibilidade, mas, paradoxalmente, como escritor ficcionista, preferiu dar-se a conhecer como homem provindo do sertão. Evidentemente, esse homem do sertão já não é do sertão, apenas a formalização do ser, em suas narrativas, foi realizada em cima das formas-pensamento sertanejas. O escritor, nascido no sertão, lembra do sertão, ou melhor, recorda (ver o sentido etimológico) o sertão, não sendo mais do sertão. O escritor assume o sertão que está presente em seus pensamentos argumentadores, quando questiona as imperfeições do mundo moderno. O sertão de suas narrativas é puro, porque foi vivenciado nos anos da infância e juventude. O sertão continua puro, nas recordações do indivíduo, porque este, como ficcionista, manipula essa pureza, ao descrevê-lo ficcionalmente. Assim, quando Guimarães Rosa diz a Lorenz, na ENTREVISTA, “eu sou antes de mais nada um homem do sertão
[2], ele próprio sabe, intimamente, que já não é do sertão. Ao categorizar, ele já não é mais sertanejo. E é graças a esta singular matéria de vida, íntima e social, que a sua narrativa não se insere no âmbito do coletivo. Sua arte é moderna (ou de transição, ou pós-moderna) e, paradoxalmente, evita realçar os valores da modernidade. O artista literário, enquanto narrador sertanejo, não se identifica com “as aspirações e valores de seu tempo”, mas, ao mesmo tempo, não pode furtar-se a se expressar como um narrador do século XX e isto se evidencia em seu discurso. O mundo roseano é um núcleo perfeito, seus personagens também são perfeitos, mas o narrador reflete as imperfeições de sua realidade vivencial. A ótica dele se encontra fragmentada (característica moderna), porque não se atém ao tempo linear. Ele já alcançou um plano onde o passar histórico não o influencia, prevalecendo mais o desejo de preencher as lacunas da memória com um discurso repleto de tensão lírica (matéria lírica). Ainda pelo meu ponto de vista, no entanto auxiliada pelos ensinamentos de Bachelard sobre o tempo, importa-lhe mais destacar o que se encontra suspenso entre o repouso e a ação. E é graças a esse momento, suspenso entre o repouso e a ação, que o narrador roseano sai da objetividade histórica e se enreda em seus próprios circunlóquios, tenta trazer à luz o que pressentiu, em termos de narrativa, a partir de seu próprio repouso vinculado ao repouso do escritor, e que se encontra estacionado no plano da reflexão profunda.

As recordações da infância no sertão, certamente, marcaram o escritor. As histórias de senhores-de-terra valentes encontraram ressonância em seu espírito, marcaram-no vivamente. Mas essas recordações só foram recuperadas por meio de posteriores questionamentos. Depois que seu narrador de A hora e vez de Augusto Matraga desorganizou temporalmente a já distinguida narrativa ficcional, que se dissociou da aparente realidade das lembranças (enquanto produto da memória), só então conseguiu livrar-se da narrativa sintagmática. O narrador pensou o sertão de sua infância (o escritor pensou o sertão de sua infância); buscou a síntese do ser na essência do ser, do vir a ser; sumariou, resumiu o sertão poeticamente, e conseguiu chegar a um final discursivo totalmente distante dos valores substanciais.

Graças a esta elevação mental, que o colocou distante do “penso, logo existo” cartesiano, e fixou em um terceiro cogito o “penso que penso que penso”, segundo teorizações bachelardianas (op. cit.), o escritor pode manifestar um sertão só dele, íntimo e poético, imune às exigências econômicas e sociais da modernidade, apesar de, eventualmente, refletir algumas imperfeições do mundo burguês capitalista. Ao mesmo tempo, observando este sertão diferente, conscientizo-me do subdesenvolvimento que o atinge, porque a consciência deste subdesenvolvimento está em mim mesma, e posso, assim, desenvolver uma comparação racional, refletir as diferenças que existem entre os dois sertões: o real e o ficcional. É importante reconhecer que os personagens de Guimarães Rosa, depois do Augusto Matraga, não são marcados pelo subdesenvolvimento, são simplesmente sertanejos, e agem como sertanejos. E, principalmente, não são alienados, porque qualquer narrativa que propicie uma outra qualquer espécie de reflexão, e que tenha como base os problemas de uma outra realidade, deprimente, não poderá ser considerada alienada. Se nos primeiros contos de Sagarana visualizou-se a consciência do subdesenvolvimento brasileiro de meados do século XX, centralizado em problemas regionais (vide “Sarapalha”), a dimensão regional em Guimarães Rosa, posteriormente, passa para o plano universal, graças a uma técnica de narrativa refinada, que propicia a transfiguração da realidade interiorana de Minas Gerais, e que, paradoxalmente, não deixa de refletir os valores reais do mundo sertanejo.

Essa transfiguração se faz por intermédio do discurso poético-ficcional, do monólogo interior, da visão simultânea, e outras técnicas discursivas que levam o leitor de Guimarães a refletir suas próprias substâncias de vida e se conscientizar cada vez mais do subdesenvolvimento de seu próprio país (seja ele um leitor brasileiro ou leitor de qualquer outro país do chamado Terceiro Mundo).

O narrador roseano de A hora e vez de Augusto Matraga, universalizando o sertão, extrapassa os contornos geográficos do sertão mineiro através de uma visão baseada nas diversas experiências de vida do escritor, aquele homem nato de um “mundo puro”, mas que alcançou outros patamares no elitista mundo do século XX.

Bachelard afirma que as pessoas agem impulsionadas pelo elan vital, ou seja, agem impulsionadas pelo arrebatamento súbito e efêmero, que as arrasta para longe dos objetivos individuais. Isto acontece quando elas se deixam levar pelo impulso do grupo, imitando-o, e assim desistem da intuição, passando a não ter reflexão própria (qualidade para se chegar ao objetivo individual), renunciando assim à própria inteligência.

A realidade do Brasil (anos finais do século XX) é um reflexo desse fenômeno de submissão mental. Antônio Cândido demonstrou que a literatura brasileira, do período de 30 e 40, refletiu esta situação, com a chamada “consciência do subdesenvolvimento”. Foi a partir de 1930 que alguns escritores não mais aceitaram reproduzir a realidade convencionada, se rebelaram contra os conceitos preestabelecidos, enfim, sofreram uma crise de valores que os levou a mudarem a técnica da narrativa. No lugar da reprodução da realidade, assumiram a criação de uma outra realidade transfigurada, fazendo da própria literatura uma realidade desmitificadora, ou seja, reivindicando a realidade da literatura. Graças a esta decisão, o ficcionista passou a ter consciência de seu fazer literário, posicionando-se frente a sua matéria de trabalho, criando e recriando o texto, se preocupando com o texto, desenvolvendo ensaios e fazendo experiências.

Pelo meu ponto de vista, Guimarães Rosa atingiu essa consciência instrumental, porque a sua literatura não se atém a uma simples expressão da realidade, existe nela uma realidade própria. O sertão de suas narrativas é uma realidade diferente da realidade do sertão do Norte de Minas Gerais, por isto, o sertão roseano é um espaço primitivo e imaculado. Por estas razões, há nele uma certa insolidez, observada na linguagem diferente, transformando-se em solidez no âmbito do ficcional. Assim, demonstrará sempre uma realidade particular, própria, acrescida de substâncias poéticas. Sertão paradoxal. Sertão paradoxal porque não há como acusar uma cisão, já que aparentemente seus narradores não se distanciam da denominação de “narradores regionalistas”; aparentemente não se afastam das raízes regionais; seus narradores são “regionalistas irrealistas”, segundo Antônio Cândido.

O diferente sertão roseano, pelo meu ponto de vista interativo revigorado evidentemente nas fontes bachelardianas, só poderia surgir de uma mente reflexiva, consciente de sua capacidade de escolha, localizada entre o eu profundo e o eu externo.

Nesse estágio, o escritor manipula o tecido narrativo, transfigurando artisticamente a realidade do sertão. Ele faz seu passado de sertanejo vir à tona, exatamente como foi vivenciado na época da inocência, e poetiza essas recordações. Poetiza, ensaia e faz experiências: cria um sertão particular no interior de um linguajar diferente do usual, marcado por uma singular visão do mundo sertanejo.

Nessa etapa da consciência pura, o Artista literário não é mais do sertão, mesmo se autoproclamando sertanejo. É antes um sertanejo que se tornou citadino, e, como cidadão do século XX, repensa o sertão de sua infância, busca-o através da arte, recorda-o incessantemente.

Desenvolvendo a sua consciência particular, o escritor de substancias sertanejas “aprende a administrar conflitos”, aprende a administrar seus paradoxos existenciais, aprende a conviver com o mundo moderno, administrando valores modernos e sertanejos com eficiência.

Guimarães Rosa não é “populista”. Sua literatura não se liga a movimentos políticos refletores dos problemas da modernidade. Mas, mesmo não refletindo ostensivamente os problemas da modernidade, seu narrador expõe indiretamente a realidade (sócio-política) de seu momento histórico, assim como expõe também a realidade do mundo capitalista em decadência.

Se não há como “aprender a administrar conflitos” políticos, socialmente, o escritor brasileiro, da metade do século XX em diante (Guimarães Rosa, e todos os outros do período que dignificaram a literatura brasileira), literariamente, procurou administrar a sua realidade interiorizada ― os conflitos e questionamentos internos ― apoiado em sua própria independência vivencial, preservando e exercendo o seu direito de livre-arbítrio. Mesmo sabendo que é difícil, em nível de realidade, solucionar “todos os problemas que envolvem o destino dos homens”, o escritor atual tem consciência de que, literariamente, é possível equacionar e solucionar (ou não) tais problemas.


[1] CÂNDIDO (1980): 25
[2] ROSA (ENTREVISTA): 15

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