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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

XIII - A AUTORIDADE DO ONTEM ETERNO


NEUZA MACHADO




Weber questiona: Por que os homens obedecem?[1]

Em primeiro lugar, afirma, há a autoridade do ontem eterno. Os subjugados se conformam com o domínio exercido pelo Patriarca. Em princípio, Augusto Esteves se assemelha à autoridade do ontem eterno, porque continua uma tradição. Seu poder foi herdado do pai, o Coronel Afonsão Esteves das Pindaíbas e do Saco-da-Embira.

Fazer um nome que se respeite não é tarefa para entretenimento, é serviço pesado, para o qual o pioneiro necessita gastar muita energia. Necessita provar sua coragem, impor sua autoridade para se fazer respeitar. Com tais atitudes, esse homem, que foi candidato a um nome, passa a ser temido e odiado, ao mesmo tempo, idolatrado, e sua descendência deverá, por força das circunstâncias, continuar tal obra.

O narrador de A Hora e Vez de Augusto Matraga nos apresenta uma pequena comunidade e seu herói: ambos em vias de se degradarem.

Eis o conflito do narrador a degradação não está no espaço apreendido — sua sensibilidade (sua criatividade) capta a pureza remanescente dos antigos núcleos —; a degradação encontra-se nele próprio, porque, porta-voz que é do Artista ficcional, conhece as várias faces/fases do Homem moderno.

Eis o conflito da narrativa: a memória (matéria épica) contrapõe-se às lembranças de um mundo para sempre perdido (matéria romanesca/ficcional). O que foi transmitido por sucessivas gerações, encontra-se agora em vias de extinção. O narrador se dá conta de que esta comunidade existe apenas em suas recordações (matéria lírica). O narrador é o representante desta comunidade primitiva e, ao mesmo tempo, burguesa. Por isto, ele é primitivo e burguês. Porque se desenvolve na dialética daquele que o idealizou, cujas origens reproduzem as comunidades fechadas do passado. Assim como Nhô Augusto herdou a autoridade do “ontem eterno”, ele herdou esta “autoridade”, como duplo de um Sábio que narra suas próprias experiências de vida (matéria histórica, paraliterária), como herdeiro de um nome sertanejo. Essas experiências de vida não são pessoais ─ mas, enquanto curso de vida são verdadeiras ─, são experiências transcendentais, irracionais, experiências de quem se coloca como porta-voz da burguesia sertaneja, edificada nos pequenos vilarejos, dominados por Senhores-de-terra poderosos.

Nhô Augusto herdou um pequeno Império e, durante algum tempo, nele reinou. Enquanto existiu a sua autoridade, ele foi representação do poder. Observo isto pela sua atitude superior ao arrematar, no leilão, a Sariema, a muito amada pelo capiauzinho “enamorado”, o capanga do major Consilva.

O povo evidentemente aplaudiu e glorificou a atitude do Poderoso. O povo necessita de um líder, necessita de um condutor.

O poder e prestígio do personagem, até ali, continuavam inalterados. Mas, havia um outro ambicionando sua posição privilegiada e procurando as brechas para derrubá-lo: o major Consilva, “velho” inimigo da família Esteves.

Recorde o Leitor a resposta de Nhô Augusto, quando o Quim Recadeiro retornou dizendo que o major havia “comprado” os bate-paus: Major de borra! Só de pique, porque era inimigo do meu pai.
[2]

O major procurou e encontrou um meio de desmoralizá-lo. Sinal de que o dito poder não estava bem edificado e ameaçava ruir: mulheres, jogos, dívidas; tudo isto proporcionava a sua decadência.

O poder social do personagem se encontrava ameaçado por um inimigo mais perigoso que o major Consilva: o contra-poder econômico da decadência do sertão. Se Nhô Augusto estava prestes a perder tudo o que possuía (família, terras), era natural que outro reivindicasse sua glória e prestígio.

O narrador roseano, em princípio, impõe-se visualizar a figura imponente de Nhô Augusto, mas, logo depois do leilão, mostra que ele está a poucos passos da decadência.

As sucessivas transformações, ao longo da análise, são significantes dos vários estágios de vida estacionados no espaço do sertão, sobrepondo-se infinitamente, imunes à ação do tempo.

Somente o narrador do século XX apreende essas sutilezas, subjacentes em um espaço onde as Idades do Mundo se confundem e se completam. Só o narrador apreende as várias etapas do tempo, entrelaçando-se e rejeitando-se, mas prestes a se anularem, graças à fragmentação do mundo moderno. Etapas de tempo que se sobrepõem e se eternizarão enquanto houver um narrador que as conte, por intermédio da memória ou através da recordação, e um ouvinte que compactue com seu ato de narrar.

A queda do personagem, suas etapas de vida representam as transformações de uma determinada burguesia que se acomodou nos pequenos vilarejos do sertão de Minas Gerais. Já não há Senhores-de-terra, mas as grandes famílias que comandavam politicamente essas localidades ainda permanecem dominando, engajadas em partidos políticos e alardeando suas origens. Os atos de heroísmo ou covardia são fatos do passado e quase não há narradores para relembrá-los.

Por este prisma, afirmo que, nesta narrativa especialmente, o narrador de Guimarães Rosa apresenta o momento de crise vivido por seu personagem Nhô Augusto em acordo com a crise sócio-econômica que ocorreu no Brasil, principalmente na sociedade agrária sertaneja, a partir dos anos trinta do século XX. O impasse, as mudanças existenciais do personagem, a própria transformação discursiva do narrador, representam, inclusive, a mudança de poder político; ainda: o contra-poder se transformando em poder de fato.

Quando chega o dia da casa cair — que, com ou sem terremoto, é um dia de chegada infalível — o dono pode estar: de dentro, ou de fora. É melhor de fora! E é a só coisa que um qualquer-um está no poder de fazer. Mesmo estando de dentro, mais vale todo vestido e perto da rua. Mas, Nhô Augusto, não: estava deitado na cama — o pior lugar que há, para se receber uma surpresa má.
[3]

O major, personificação do contra-poder que aspira ao poder, “compra” os capangas de Nhô Augusto. O poder do herói ruíra.

Reavaliando o que foi afirmado acima: Teríamos, neste trecho, a imagem de um momento de transição do Brasil? No espaço do sertão várias etapas do Brasil se sobrepõem, alheias à ação do tempo. Este trecho, significante de mudança narrativa, representa os valores de uso (a submissão primitiva do povo a um Senhor-de-terra) estando em vias de sofrer uma profunda transformação; ao mesmo tempo, representa os valores de troca, mediatizados pelo dinheiro, que comandam o mundo burguês.

É interessante observar os motivos da debandada. Se, enquanto possuiu recursos e meios, para ser um homem poderoso, Nhô Augusto mandava e desmandava em seus subordinados, agora, que se encontrava pobre, não necessitava mais ser obedecido. Um outro poder — contra-poder — estava a caminho, e os bate-paus aceitaram mudar de comando.

Aqui entra um problema sério: o das classes sociais.

Na definição de Weber, hoje considerada reacionária (mas que diz a verdade sobre o ficcional), as classes sociais

(...) não são comunidades; representam simplesmente bases possíveis, e freqüentes, de ação comunal. Podemos falar de uma classe quando: 1) certo número de pessoas tem em comum um componente causal específico em suas oportunidades de vida, e na medida em que 2) esse componente é representado exclusivamente pelos interesses econômicos da posse de bens e oportunidades de renda, e 3) é representado sob as condições de mercado de produto ou mercado de trabalho.
[4]

Quando Nhô Augusto mandou o Quim Recadeiro chamar os bate-paus, ainda não sabia que o major Consilva os havia “comprados” com uma melhor oferta de pagamento. Esquecera-se que andava mal de vida e que, há muito tempo, já não pagava o ordenado de seus homens de confiança. A obediência perde o sentido quando o homem perde o poder.

Vejamos o trecho:

Dali a pouco, porém, tornava o Quim, com nova desolação: os bate-paus não vinham... Não queriam ficar mais com Nhô Augusto... O major Consilva tinha ajustado, um e mais um, os quatro, para seus capangas, pagando bem. Não vinham mesmo. O mais merecido, o cabeça, até mandara dizer, faltando ao respeito:

— Fala com Nhô Augusto que sol de cima é dinheiro!... pra ele pagar o que está nos devendo... E é mandar por portador calado, que nós não podemos escutar prosa de outro, que seu major disse que não quer.
[5]

Eis aqui a inevitável “dinâmica do poder”, com suas competições e pretensões, assinaladas por Max Weber e já mencionadas anteriormente.

Para o narrador, o major Consilva representa a certeza de que o sertão, enquanto espaço exterior aos conflitos do mundo, com suas superposições sociais e temporais, ímpares, permanecerá intocável, resistindo às investidas degradantes da sociedade moderna. Enquanto esse espaço exterior for captado por um olhar solitário, e reconhecido como espaço onde se ancora a tradição de um povo, este mesmo narrador terá a certeza de que seu mundo de origem não se extinguiu. Apenas, em termos de narrativa, esse espaço ficará para trás, encubado, como certas plantas que “dormem” sob a terra, retornando à vida de tempos em tempos.

As etapas de vida do personagem, as etapas de discurso-vida do narrador, as etapas do mundo burguês sertanejo, em aceleradas transformações, necessitam ser significadas. Todos os envolvidos na narrativa, não apenas Nhô Augusto, sentem o momento da perda de poder, sentem o momento da perda de valores, das mudanças existenciais. O significante nuclear desse momento, no âmbito da ficção, é a surra aplicada no personagem. Nhô Augusto apanhou, todos apanharam: o narrador, a sociedade burguesa sertaneja, o leitor, que compactuou e se apoderou da matéria do narrador e do infortúnio do personagem, como se fosse sua desgraça que estivesse sendo narrada. Assim, o personagem representante da burguesia, o narrador burguês, o leitor burguês, todos sentindo a vingança do mais fraco, mediatizada por outro poder, para vingar-se de quem o ofendeu.

Nhô Augusto apanhara de seu bate-paus, assessorados pelo capiauzinho, apaixonado de Sariema. Foi marcado como rês; não teve tempo de se vingar do abandono da Dionóra. Nhô Augusto fora à chácara do major confiando em seu anterior poder e se esquecera que esse poder residia exatamente naqueles quatro bate-paus, os quais agora obedeciam ao major. Era a hora da vingança do mais fraco.

Assim, o sertanejo sem-terra de agora, descendente de algum senhor do sertão. Sabe-se vinculado pelo nome, que traz como uma marca, a uma dinastia de desbravadores de terra, mas se pergunta por que estas terras já não são suas? Estas terras agora pertencem a famílias que outrora foram subordinadas de seus antepassados. Algum “Nhô Augusto Matraga”, imprudente, perdeu-as.


[1] Ibidem: 99
[2] ROSA (1986): 16
[3] Ibidem: 15
[4] WEBER (1979): 212
[5] ROSA (1986): 15

MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez. Rio de Janeiro: NMachado, 2006. (ISBN 85-904306-2-6)

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