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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

XV - A TRANSMUTAÇÃO DISCURSIVA DO NARRADOR



XV - A TRANSMUTAÇÃO DISCURSIVA DO NARRADOR

NEUZA MACHADO


Urge quebrar esta monotonia, esta repetição de modelos. Faz-se necessário tomar a vez do herói, sair das comunidades fechadas, abandonar a narrativa sintagmática e assumir a narração de uma estória na qual a desintegração discursiva reflita o mundo caótico que circunda o espaço fechado do sertão e que não se encontra significado pelo narrador. Já não há lugar para a unidade narrativa. Quem narra já não se identifica com a matéria narrada. Encontra-se, agora, fragmentado, envolto por inúmeras recordações que se embaralham no mais fundo do eu. Aproxima-se o momento da verdadeira “queda” do herói — a morte ideológica — e o nascimento do personagem ficcional. Aproxima-se o momento da permutação de papéis. Agora, o herói é o narrador, semideus com poderes de vida e de morte. O poder de Nhô Augusto é transferido para o narrador moderno, e o poder do Artista ficcional também. Agora, o narrador é o autêntico representante do mundo burguês, retendo em suas mãos a condução da narrativa. Todo poder é poder de vida e de morte. A hora e vez do personagem Augusto Matraga depende do narrador, porque reflete o poder do Artista ficcional do século XX. O narrador submete o personagem a seus desígnios. Retomando Foucault: Como quando um general manda seus soldados para a guerra. O narrador, a partir de agora, será o único dono de um discurso narrativo que reflete as condições de seu momento histórico. Doravante, apenas o personagem Nhô Augusto continuará aparentemente o mesmo.

Esta transformação discursiva impõe-me raciocinar sobre a morte simbólica do narrador memorialista e o nascimento do narrador moderno. Este “sepulta” a lembrança (matéria memorialista) e faz surgir insólita recordação (matéria lírica) de um mundo que foi seu leitmotiv de vida — leitmotiv de vida do Artista —, mundo que, agora, encontra-se desintegrado, embaralhado, em suas recordações. Simbolicamente, repito, morre o narrador memorialista e nasce o narrador-personagem, narrador do século XX, aquele que sabe dos mais íntimos pensamentos do Artista.

Nhô Augusto continua no caminho religioso, pois teme não alcançar o Reino do Céu. No decorrer da narrativa, ele continua a pagar por suas culpas — as culpas burguesas do narrador.

Tenho é que ficar pagando minhas culpas, penando aqui mesmo no sozinho. Já fiz penitência estes anos todos, e não posso ter prejuízo deles. Se eu quisesse esperdiçar essa penitência feita, ficava sem uma coisa e sem outra.
[1]

O homem das comunidades antigas não conheceu o ônus da culpa. O personagem já não representa as antigas comunidades fechadas. Agora, o personagem — ficcional — revela seu Criador.

O personagem perseverou, mas começou a mudar as suas atitudes. Começou uma espécie de retomada do poder primitivo, mas de uma forma que não abalasse a sua consciência (a consciência burguesa do narrador).

... pouco a pouco, devagarinho, imperceptível, alguma coisa pegou a querer voltar para ele, a crescer-lhe do fundo para fora, sorrateira como a chegada do tempo das águas, que vinha vindo paralela.
[2]

Começou a mudar. Estava mais alegre e mais brejeiro. Estava mais poderoso.

Aí, então, tudo estava mesmo muito mudado, e Nhô Augusto, de repente, pensou com a idéia muito fácil, e o corpo muito bom. Quis se assustar, mas se riu:

— Deus está tirando o saco das minhas costas, mãe Quitéria! Agora eu sei que ele está se alembrando de mim...
[3]

Retomou os hábitos antigos, que havia rejeitado: a preguiça, o fumo. Não era pecado... o que ele devia era ficar alegre, sempre alegre
[4]; ter alegria não era pecado. Era uma “alegria” nietzscheana.

Consideremos a frase do personagem: Deus está tirando o saco das minhas costas, mãe Quitéria! Agora eu sei que ele está se alembrando de mim. Seria este o Deus dogmático que castiga e impõe preceitos de vida, ou o demiurgo do ficcional? Antes, o narrador não teve acesso aos pensamentos de Nhô Augusto, doravante, conhecerá todas as gradações psicológicas de sua vida interior.

Aí, então, tudo estava mesmo muito mudado, porque tudo mudara no plano do discurso narrativo. Quebrou-se a monotonia do discurso ordenado; instaurou-se o “reinado” do discurso desencontrado (diferente, poético, ilógico). O insólito em Guimarães Rosa, encontra-se ao nível do discurso.

Para reafirmar sua transformação discursiva, o narrador faz surgir, nesse momento de impasse da narrativa, a figura de seu Joãozinho Bem-Bem e seu bando. Vinham do Norte.
[5]

Vinham do Norte. A palavra “Norte” como significante de espaço ficcional. O arraial do Tombador seria o espaço intermediário, onde se daria o encontro dos dois personagens, representantes de dois planos narrativos diferentes: Nhô Augusto, herói do plano histórico-substancial, resgatado pela narrativa memorialista, caminhando em direção ao plano ficcional simbolizado pela palavra “Norte” — mundo ficcional — e adquirindo temporariamente existência histórica movido por substâncias ideológicas. Nhô Augusto, ao se transformar em carismático, encaminhou-se também para o Norte (do sertão), juntamente com seus pretos tutelares. Observe-se que o narrador apresenta um personagem de ficção, ao caracterizar a figura de seu Joãozinho Bem-Bem. No início (primeiro segmento da narrativa), quando apresentou a figura de Nhô Augusto, ele estava preso à lógica da História, submetido às imposições da memória. Ao apresentar a figura de seu Joãozinho Bem-Bem, isto não acontece. O narrador já se libertou.

O bando desfilou em formação espaçada, o chefe no meio. E o chefe — o mais forte e o mais alto de todos, com um lenço azul enrolado no chapéu de couro, com dentes brancos limados em acume, de olhar dominador e tosse rosnada, mas sorriso bonito e mansinho de moça — era o homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre do Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitaí à Barra do Verde-Grande, do Rio Gavião até aos Montes-Claros, de Carinhanha até Paracatu, maior do que Antônio Dó ou Indalécio; o arranca-toco, o treme-treme, o come brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arranca: Seu Joãozinho Bem-Bem.
[6]

O poder de seu Joãozinho Bem-Bem é especial: como já foi observado em sua descrição, irradiava também uma luz carismática (lenço azul, dentes brancos). Mas não carisma religioso. Seu carisma provinha de sua força, destemor, coragem e desapego a bens materiais (carisma guerreiro). Brigava e matava, mas só se houvesse motivos. Apadrinhava as brigas dos amigos ou, então, brigava e matava por motivo de política. Seus homens o obedeciam cegamente e, se fosse preciso, morreriam por ele. Costumava dizer: Gente minha só mata as mortes que eu mando, e morte que eu mando é só morte legal!
[7]

Como todo ser carismático, vivia só, desvencilhado dos laços familiares, não ligava para as mulheres. E as moças... Para mim não quero nenhuma, que mulher não me enfraquece: as mocinhas são para meus homens!
[8]

O narrador se vale deste novo personagem, para operar as modificações necessárias no plano do discurso. Agora, Nhô Augusto se encontra envolvido por atitudes de vida conflitantes, incertezas quanto ao futuro. O aspecto moral da narrativa memorialista desaparece e o narrador se esforça por ordenar o desarticulado. Os conflitos e incertezas refletem a desorientação (nomenclatura de Walter Benjamin) do discurso do narrador. Se antes as etapas de vida eram previsíveis, agora nem mesmo o narrador saberá como se dará o desfecho. Ninguém, inclusive o leitor, saberá prever o que virá a seguir. O narrador, a partir da chegada de seu Joãozinho Bem-Bem e seu bando, vai esforçar-se ao máximo para dar sentido às sensações que o incomodam e que acontecem em seu mundo ficcional.

Com a chegada de seu Joãozinho, a tentação voltou a perseguir Nhô Augusto. Seu Joãozinho percebeu que o dono da casa não era tão pacífico como demonstrava, e começou a tentá-lo, para que retornasse às brigas. Este provou novamente as delícias do poder: pegou em arma, atirou em um pássaro para experimentar a pontaria (para exercitar o seu poder). Logo depois se arrependeu e retomou a rezaria. Ficou triste novamente, acabrunhado. Na hora da partida do bando, seu Joãozinho ainda tenta convencer Nhô Augusto.

Mano Velho, o senhor gosta de brigar, e entende. Está-se vendo que não viveu sempre aqui, nesta grota, capinando roça e cortando lenha. (...) Quer se amadrinhar com o meu povo? Quer vir junto?

— Ah, não me tenta, que eu não posso, seu Joãozinho Bem-Bem.
[9]

À interferência do jagunço, está conflituado. Seria o antigo poder lhe corroendo a alma? Era só falar, era só bulir com a boca que seu Joãozinho Bem-Bem e seu bando acabavam com o major Consilva. Mas — qual! — aí era que se perdia mesmo, que Deus o castigava com mão mais dura...
[10]

Nhô Augusto se percebe atado à sua antiga penitência. — Agora que eu principiei e já andei um caminho tão grande, ninguém me faz virar e nem andar de-fasto!
[11]

Lukács fala do indivíduo problemático do romance moderno e do mundo que o cerca. Como imaginar Nhô Augusto um personagem conflituado, se se conhece a pureza de seu espaço existencial? Ora, personagem e espaço, no sertão roseano, são puros. O narrador, no momento personagem atuante, é quem reflete o impuro mundo moderno. Ele perde contato com a pureza primitiva do sertão, perde contato com as idéias disseminadas pela experiência de um povo ímpar. A aspiração do personagem, de ter a sua hora e vez, está problematizada, porque o problemático, e solitário, é o narrador. Este sim, é o indivíduo ilhado em um mundo de conformismo e convenção. Quem busca valores humanos autênticos e não os encontra? O narrador. Ele conheceu um imaculado sertão e era também um imaculado ser. Posteriormente, conheceu o mundo e seus valores inautênticos, e degradou-se. Buscou novamente a autenticidade do sertão, por meio das lembranças, da memória, mas não conseguiu encontrá-la. Na primeira etapa da narrativa memorialista (não confundir com narrativa de memórias), deixa entrever momentos de degradação nos personagens. Suas lembranças se encontram maculadas pela degradação do mundo moderno. Afastando-se do sertão, rompe com o primitivo.

Lembremos as afirmações de Rosa ao crítico Lorenz:

Não me interessa o dinheiro: venho de um mundo onde ele não adianta muito; lá se necessita de pão, armas, cavalos, e ainda se pratica o comércio da troca.
[12]

Comércio de troca para Guimarães Rosa eqüivale aos “valores de uso” assinalados por Marx. Seu narrador, em A hora e vez de Augusto Matraga, é paradoxal, porque expressa seus próprios paradoxos existenciais.

Por esta ótica, é possível compreender o desejo de poder do major, tentando aniquilar o poderio de Nhô Augusto; a ambição por dinheiro dos bate-paus (diz pra Nhô Augusto que sol de cima é dinheiro!). Por esta ótica, será possível afirmar que a narrativa capta a transição entre o mundo primitivo e o mundo burguês capitalista.

Em meio a plenitude de vida, e através da representação dessa plenitude, o romance dá notícia de quem vive.
[13]

Retomo o já dito:

Até um determinado momento, o narrador reproduz a trajetória de vida de alguma figura influente (ou o personagem é o somatório de várias figuras influentes) e, de cuja história o mesmo teve conhecimento por intermédio dos relatos dos antigos. Posteriormente, passa a criar a trajetória de vida do personagem.

Diz Benjamin: A experiência que anda de boca em boca é a fonte onde beberam todos os narradores.
[14]

Palavras de Guimarães Rosa:

Nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue narrar estórias, já no berço recebemos esse dom para toda a vida.
[15]

Narrar estórias corre por nossas veias e penetra em nosso corpo, em nossa alma, porque o sertão é a alma de seus homens.
[16]

Depois da intervenção do personagem Tião, o próprio narrador não tem mais controle sobre o desenrolar dos acontecimentos. Por estas razões, o discurso se torna diferente, estranho, insólito; apreende-se nele o que Walter Benjamin chama de “desorientação verbal”.

Retomando agora o fio narrativo, verei um personagem novamente em vias de mudança. O narrador diz que Nhô Augusto não percebia os rumos que tomava. Isto, porque o Criador ficcional e sua criatura se estão transformando.

Nhô Augusto começa a sentir saudade da antiga vida, das mulheres. O lado mundano recomeça a latejar em seu sangue. Está mudado, mas não desiste de seu propósito: — Cada um tem a sua hora, e a minha vez há de chegar!

Esta frase daqui para frente será o único elemento que sustentará o fio narrativo.

Um dia resolve voltar.

Volta sozinho. O líder carismático readquire a pele do poder social? Não penso assim. A lógica do Acontecimento comandará a narrativa de ora em diante. Volta só, porque apenas os carismáticos necessitam de discípulos, e ele já abandonou este revestimento. Volta em um jumento à imitação de Jesus. Ainda possuindo seus dons, pois que os adquirira por mérito; tanto os possuía que todos sentiram a partida. Seu desejo de salvação continua intacto, mas não suporta o peso do carisma. — Qualquer paixão me adiverte!... Oh coisa boa a gente andar solto, sem obrigação nenhuma e bem com Deus!...
[17]

Andar solto, sem obrigação nenhuma, livre dos limites substanciais e normativos, sob o comando dos imprevistos, do não-conhecido, e, principalmente, bem com Deus.

Esse novo deus diferente do antigo: depois da partida de seu Joãozinho, observa-se uma crítica do narrador, quando este mostra Nhô Augusto a lamentar não ter aceitado o oferecimento, para, com isto, vingar-se de seus inimigos. Mas, reconhece que se agisse movido pela vingança, Deus o castigava com mão mais dura.
[18]

E só então foi que ele soube de que jeito estava pegado à sua penitência, e entendeu que essa história de se navegar com religião, e de querer tirar sua alma da boca do demônio, era a mesma coisa que entrar num brejão, que, para a frente, para trás e para os lados, é sempre dificultoso e atola sempre mais.
[19]

Para solucionar o impasse, o narrador recorre à imaginação. Agora, já tem acesso à interioridade de sua criatura:

Á noite, tomou um trago sem ser por regra, o que foi bem bom, porque ele viajou, do acordado para o sono, montado num sonho bonito, no qual havia um Deus valentão, o mais solerte de todos os valentões, assim parecido com seu Joãozinho Bem-Bem, e que o mandava ir brigar, só para lhe experimentar a força, pois que ficava lá em-cima, sem descuido, garantindo tudo.
[20]

Graças ao sonho, Nhô Augusto entra em contato com um deus que garante tudo, passa a andar solto e bem com Deus, um deus valentão que o mandava brigar só para experimentar-lhe o poder.

O narrador também está solto, sem obrigação nenhuma e sob as ordens desse deus-que-garante-tudo.

Mudanças ocorrem no discurso. O narrador se deixa contagiar pelas minúcias do mundo externo do sertão que estão recolhidas em seu íntimo. Recolhe os fragmentos de suas lembranças, transformando-as em acontecimentos. Há uma superabundância de pensamentos que se entrechocam e se ajustam, e o discurso retórico (característica do literário, segundo Lefebve
[21]) impõe suas diretrizes.

De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacas passava, tinindo guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. Mais outro. E ainda outro, mais abaixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, gargalhantes, incapazes de acertarem as vozes na disciplina de um coro.

E agora os periquitos, os periquitinhos de guinchos timpânicos, uma esquadrilha sobrevoando outra... E mesmo, de vez em quando, discutindo, brigando, um casal de papagaios ciumentos. Todos tinham muita pressa: os únicos que interromperam, por momentos, a viagem, foram os alegres tuins, os minúsculos tuins de cabecinhas amarelas, que não levam nada a sério, e que choveram nos pés de mamão e fizeram recreio, aos pares, sem sustar o alarido — rrrl, rrril! rrrl-rrril!...
[22]

O insólito da ficção em nível de discurso textual: os fonemas r, i, l agrupados de forma a caracterizarem o alarido dos tuins. Por que a manhã gargalhou com a revoada dos pássaros?

Mas o que não se interrompia era o trânsito das gárrulas maitacas. Um bando grazinava alto, risonho, para o que ia na frente: — Me espera!... — E o grito tremia e ficava nos ares, para outro escalão, que avançava lá atrás.
[23]

Os estranhamentos, em nível de discurso, nas transformações sofridas pelo narrador e pelo narrado. Estes se encontram sob as exigências do mágico mundo ficcional e todas as contribuições poéticas serão bem-vindas. A mimésis literária ficcional se sobressai apenas no texto visível. Nhô Augusto é um simples receptor das variações mentais de quem narra. Agora, o discurso é poético, repleto de metáforas, antíteses e estranhamentos. Agora, o narrador faz seu personagem cantar velhas cantigas e encantar-se com a natureza.

Os estranhamentos, o insólito irrompendo do texto:

E Nhô Augusto pegou a cantar a cantiga, muito velha, do capiau exilado:

“Eu quero ver a moreninha tabaroa,
arregaçada, enchendo o pote na lagoa...”


Cantou, longo tempo. Até que todas as asas saíssem do céu.
[24]

“Asas” conotando “pássaros”. “Asas” impondo a visualização da grandiosidade do espetáculo do bando de maitacas, maracanãs e tuins voando em direção ao sul, em períodos cíclicos. (Futuramente, ao Sul: ele vai tentar o retorno, mas não conseguirá).

Outro estranhamento. Depois que os pássaros passam, ele raciocina: Não passam mais... Ô papagaiada vagabunda! Já devem de estar longe daqui...
[25] A seguir, observa-se a perplexidade do narrador, comandando o ato de narrar: Longe, onde?[26], se não há distâncias geográficas no mundo da ficção. Eis o insólito. Há uma intercalação de versos, através do ato de cantar de Nhô Augusto.

“Como corisca, como ronca a trovoada,
No meu sertão, na minha terra abençoada...”
[27]

O narrador apresentara um bonito dia ensolarado. Novamente, impõe sua perplexidade, diante de uma descoberta que se delineia subjetivamente, ainda incubada: Longe, onde? Intercala outros versos, obrigando o leitor a perceber um discurso insólito.

“Quero ir namorar com as pequenas,
com as morenas do Norte de Minas...”
[28]

Como desejar namorar as morenas do Norte de Minas, se ele se encontra no Norte? Longe, onde, então?

“Norte” é o mundo ficcional. No literário não há fronteiras (Longe, onde?), não há distancias temporais, não há imposições lingüísticas, não impera a lógica da razão. Longe, onde?, se tudo é possível em um mundo de um deus-que-garante-tudo.

O personagem, agora, é o somatório de todos os heróis, quer sejam humanos ou literários: Jesus, cavaleiro medieval, cavaleiro andante, Quixote, pícaro. Seu retorno é pautado por acontecimentos díspares, poéticos e insólitos. Não há metas a alcançar, não há pressa de se chegar a um determinado sítio. A viagem de Nhô Augusto, de volta ao seu local de origem, é um passeio poético, passeio do narrador, visitando as recordações do sertão misturadas às lembranças de antigas narrativas. Para não se afastar totalmente do mundo da ficção, se vale do burrico, a montaria de Nhô Augusto, deixando a critério do animal os rumos da viagem (da narrativa). A “desorientação verbal” (cf. Benjamin) demonstra a impossibilidade de se desenvolver uma narrativa memorialista em um mundo que já perdeu suas características comunitárias. Assim, Nhô Augusto, solto e bem com “deus”, sofre um novo imprevisto.

Mas, somadas as léguas e deduzidos os desvios, vinham eles sempre para o sul, na direção das maitacas viajoras. Agora, amiudava-se o aparecimento de pessoas – mais ranchos, mais casas, povoados, fazendas, depois, arraiais brotando do chão. E então, de repente, estiveram a muito pouca distância do arraial do Murici.

— Não me importo! Aonde o jegue quiser me levar, nós vamos, porque estamos indo é com Deus!...

E assim entraram no arraial do Rala-Coco, onde havia, no momento, uma agitação assustada no povo.
[29]

Se antes o arraial do Tombador se caracterizou como espaço intermediário para a permutação de papéis dos personagens, ou seja, Nhô Augusto saindo do Histórico para o Ficcional, e seu Joãozinho saindo do ficcional para adquirir existência histórica, agora, se dá o contrário, no arraial do Rala-Coco: Nhô Augusto quer reconquistar seus poderes históricos, retornando ao arraial do Murici, seu espaço de origem. Seu Joãozinho procura retornar ao Ficcional, de onde “aparentemente” havia saído. Ao mesmo tempo, também, o narrador e o personagem permutam seus papéis na estória narrada. Seu Joãozinho jamais saiu do ficcional. O ficcional como um espelho refletindo o real-substancial. Na opacidade do espelho, ao contrário do vidro e sua natureza translúcida. Caminhando em direção ao Sul, Nhô Augusto, em verdade, caminha sempre em direção ao “Norte”, ou seja, torna-se personagem ficcional. Ele não volta, não retoma o Histórico. A respeito de seu Joãozinho, e suas proezas históricas, o narrador abstém-se de falar. Percebe-se que ele está retornando para o Norte (descendo para a Bahia...
[30]), depois de ter ajudado a um amigo, e sua condição de personagem ficcional continua inalterada. O arraial do Rala-Coco (plano intermediário) é o lugar onde se dá o reencontro. O arraial em questão, ligado às três dimensões: social, mítica e ficcional, está a pouca distância do arraial do Murici, porque no mundo ficcional não existem fronteiras geográficas.

Os imprevistos se sucedem: a morte do Juruminho; novo convite de seu Joãozinho, para que Nhô Augusto faça parte do bando; oferecimento das armas de Juruminho, essa estava sendo a maior de suas tentações
[31]; recusa de Nhô Augusto; e, finalmente, o imprevisto central que desencadeará o desfecho da narrativa: a chegada do velho desvalido, que pede clemência para sua família, ameaçada por seu Joãozinho, por ter sido um de seus filhos o matador do Juruminho. Seu Joãozinho queria vingar-se da morte de seu capanga, matando um irmão do assassino e “presenteando” as irmãs a seu bando.

O velho pedia e implorava, e foi aos poucos despertando a consciência de Nhô Augusto (do narrador?). Em determinado momento, depois de implorar e não ser atendido, o velho tomou-se de fúria e enfrentou o jagunço: — Pois então, satanás, eu chamo a força de Deus pra ajudar minha fraqueza no ferro da tua força maldita!
[32]

E a força de deus aparece. O que vem a ser “força de Deus”?

A força de deus e o carisma recém-rejeitado continuavam incólumes no personagem. Nhô Augusto interfere:

— Não faz isso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, que o desgraçado do velho está pedindo em nome de Nosso Senhor e da Virgem Maria! E o que vocês estão querendo fazer em casa dele é coisa que nem Deus não manda e nem o diabo faz!

Nhô Augusto havia falado; e a sua mão esquerda acariciava a lâmina da lapiana, enquanto a direita pousava, despreocupada, no pescoço da carabina.
[33]

Nhô Augusto havia falado! Esta assertiva prova o retorno do poder, um poder que já não se encontra sob as ordens da História. Nhô Augusto falou e acariciou a lâmina da lapiana e a carabina, dados irrefutáveis de poder: voz de comando, força física escorada por armas, transformação facial, ocasionada pelo esforço de se fazer obedecer. Poder da força de Deus; poder excepcional e carisma sustentado por um deus-que-garante-tudo.

Dera tom calmo às palavras, mas puxava forte respiração soprosa, que quase o levantava do selim e o punha no assento outra vez. Os olhos cresciam, todo ele crescia, como um touro que acha os vaqueiros excessivamente abundantes e cisma de ficar sozinho no meio do curral.
[34]

O discurso não é ideológico, continua ficcional.

Seu Joãozinho percebe o sério. No mundo das essências conflitantes, o enfrentar-se também não é sinal de estima?

O detonador da luta foi um capanga de seu Joãozinho, o Teófilo Sussuarana, homem bronco, que partiu para cima de Nhô Augusto. Este percebeu que a sua vez chegara: — Epa! Nomopadrofilhospritossantamém! Avança cambada de filhos-da-mãe, que chegou minha vez!
[35]

Seu Joãozinho reivindicou o direito de luta com Nhô Augusto sem interferência. E na epifania, na manifestação final: — Sai, Cangussu! Foge, daí, Epifânio! Deixa nós dois brigar sozinhos!.
[36]

Foi uma glória. Os dois sozinhos em luta. O povo observava à distância, enquanto as balas se entrecortavam, e as facas se entrechocavam. Nhô Augusto chamando o outro de “meu parente”. Eqüivalem-se, pois se ambos morrem.

No decisivo da narrativa, vê-se a força do poético:

— Se entrega, mano velho, que eu não quero lhe matar...
— Joga a faca fora, dá viva a Deus, e corre, seu Joãozinho Bem-Bem...
— Mano velho! Agora é que tu vai me dizer “quantos palmos é que tem do calcanhar ao cotovelo!...
— Se arrepende dos pecados, que senão vai sem contrição, e vai direitinho pra o inferno, meu parente seu Joãozinho Bem-Bem!
— Ui, estou morto...
[37]

Nhô Augusto esfaqueara mortalmente seu Joãozinho, mas também se vê ferido de morte.

Dois personagens poderosos se enfrentaram; dois personagens possuidores de idênticos dons. Não seria justo que um fosse o vencedor. Ambos perderam; ambos venceram. Como na matéria trágica, os dois têm igualmente razão — por isso se aniquilam. O ato da morte simboliza o renascimento, o “sentido de vida” perene só acessível por meio do imaginário.

Pelo ponto de vista sociológico, os dois não podiam fracassar, pois ambos eram forças do Poder. Nas teorias de Weber encontro algo que me reconduz a este momento.

Os fundadores das religiões mundiais e os profetas, bem como os heróis militares e políticos, são os arquétipos do líder carismático. Milagres e revelações, feitos heróicos de valor e êxitos surpreendentes são marcas características de sua estatura. O fracasso é a sua ruína.
[38]

Se ambos não podiam fracassar, a solução melhor foi a dupla morte dos dois personagens. A morte como uma espécie de redenção, de compensação. Os dois personagens seriam lembrados; aquela briga seria sempre lembrada.

O povo começava a idolatrar Nhô Augusto:

Foi Deus quem mandou esse homem do jumento, por mor de salvar as famílias da gente!...
[39]

E o velho choroso exclamava:

— Traz meus filhos, para agradecerem a ele, para beijarem os pés dele!... Não deixem este santo morrer assim... P’ra que foi que foram inventar arma de fogo, meu Deus?!...
[40]

Morrendo, o personagem do sertão roseano tinha o rosto radiante. Estava santificado e glorificado (nas esferas superiores do pensamento puro). Experimentou o Poder do Ontem Eterno, suportou a Força de Deus, e soube desenvolver seu carisma. Somado a tudo isto, um deus-que-garante-tudo, desconhecido e onírico, estivera ali, até o fim, dando sentido à sua vida ficcional. Sua hora havia chegado, ou por outra, já chegara há muito tempo, quando o narrador sertanejo do século XX abandonou o tom memorialista e “tomou a vez” do herói.


[1] Ibidem: 29
[2] Ibidem
[3] Ibidem: 30
[4] Ibidem
[5] Ibidem
[6] Ibidem: 31
[7] Ibidem: 34
[8] Ibidem: 48
[9] Ibidem: 37
[10] Ibidem: 38
[11] Ibidem
[12] ROSA (1979): 11
[13] BENJAMIN (1980): 60
[14] Ibidem: 58
[15] ROSA (1979): 8
[16] Ibidem
[17] ROSA (1986): 38
[18] Ibidem
[19] Ibidem
[20] Ibidem
[21] LEFEBVE, Maurice-Jean. Estrutura do discurso da poesia e da narrativa. Coimbra: Almedina, 1980.
[22] ROSA (1986): 39-40
[23] Ibidem: 40
[24] Ibidem
[25] Ibidem: 41
[26] Ibidem
[27] Ibidem
[28] Ibidem
[29] Ibidem: 44
[30] Ibidem: 45
[31] Ibidem: 47
[32] Ibidem: 48
[33] Ibidem
[34] Ibidem: 49
[35] Ibidem
[36] Ibidem: 50
[37] Ibidem
[38] WEBER (1979): 70
[39] ROSA (1976): 51
[40] Ibidem: 52


MACHADO, Neuza. O Narrador Toma a Vez. Rio de Janeiro: NMachado, 2006. (ISBN 85-904306-2-6)

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