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terça-feira, 16 de março de 2010

BACHELARD: FILOSOFIA DO VAZIO x FILOSOFIA DO CHEIO


BACHELARD: FILOSOFIA DO VAZIO x FILOSOFIA DO CHEIO

NEUZA MACHADO



No capítulo "A distensão e o nada”, Bachelard mostra que não é um total opositor de H. Bergson, apenas não aceita sua duração plena, contínua, estável e segura,e, por isso, procura provar que em qualquer duração existe a essência metafísica do risco — absoluto e total, sem objetivo e sem razão —, e que esse risco possibilita a destruição da segurança da felicidade de qualquer indivíduo. O risco absoluto abala as estruturas das coisas estáveis como uma vertigem que atrai o sujeito pensante para o perigo, para a novidade, para a morte, para o nada.

Por este aspecto, o risco absoluto poderia ser detectado no momento em que o indivíduo pensante estivesse submetido ao repouso ativado. O repouso ativado (ou fervilhante) seria o momento da distensão, do afrouxamento, do não-funcionamento dos pensamentos comandados pela filosofia do cheio. Esse momento de distensão (jamais pensar nesse repouso como algo lúdico e tranquilo) propicia uma identificação maior com o nada e a rejeição das confirmações secularmente instituídas. Assim, paralelamente à filosofia da qualificação bergsoniana, Bachelard postula a filosofia da aniquilação, demonstrando que o repouso ativado mediaria os dois aspectos filosóficos.

O repouso ativado impediria ou promoveria a aniquilação total do indivíduo, demonstraria o sucesso ontológico do ser, se fosse observado posteriormente (depois do repouso) uma criação renovada do ser por ele mesmo. Esta criação renovada, ligada ao ato espiritual da consciência em sua forma gratuita, instauraria, por exemplo, uma resistência aos apelos do suicídio, demonstraria também o triunfo do indivíduo pensante sobre a sedução do nada, mas demonstraria sobretudo que os pensamentos surgidos depois da antevisão da aniquilação seriam totalmente inéditos, diferentes dos já padronizados.

A filosofia da aniquilação comprova que o ser, o movimento, o espaço, a duração, admitem lacunas, e estas lacunas são sustentadas no espaço intermediário do instante dinamizado, suspenso entre o antes e o depois. A filosofia da aniquilação, bachelardiana, supõe o nada como limite, enquanto que a filosofia da qualificação, bergsoniana, supõe a substância como suporte. O nada bachelardiano postula o repouso da ação natural da duração, já que uma função deve frequentemente interromper-se de funcionar. Depois da interrupção (do repouso fervilhante), surge o pensamento puro, resgatado da idéia do nada. Assim, o pensamento puro, segundo Bachelard, recomeça da recusa da vida estabilizada, na tentativa de reformulá-la. Com a interrupção da função, surge o princípio da negação temporal.

Já que a função (ação natural da duração ou o papel da duração na realidade temporal) deve frequentemente interromper-se de funcionar, para Bachelard, é algo normal atingir o limite e pensar a questão do repouso da ação natural da duração. O ato de pensar a questão do repouso ativado revela que há diferentes estágios (fundamentais) na realidade temporal, e este conhecimento só se torna possível quando se retrocede o princípio da negação até a realidade temporal. O repouso ativado permite esse retrocesso e faz entender a questão do nada; o repouso ativado (recusa da vida estável) permite uma nova atuação do pensamento, agora claro, puro, surgido a partir do vazio.

“Entre o vazio e cheio, parece-nos haver uma perfeita correlação. Um não é inteligível sem o outro, e sobretudo uma ação não se esclareceria sem a outra. Se nos recusam a intuição do vazio, estamos no direito de recusar a intuição do cheio” (Bachelard).

Bachelard não aceita os juízos pré-estabelecidos: estes já surgem como argumentos frágeis, impedindo a polêmica ou debate. Ao comentar os juízos de valor, critica explicitamente as idéias de Bergson. A comparação de dois juízos pré-estabelecidos (esta mesa é branca em confronto com esta mesa não é branca) não gera polêmicas, apenas mostra que a primeira afirmação denuncia o caráter determinado e imediato do juízo de valor enquanto que a segunda denuncia o caráter indeterminado e indireto do outro juízo de valor.

Para o filósofo, vale mais o juízo da descoberta. Por exemplo, a descoberta da dália azul (já que não há dálias azuis no âmbito do juízo pré-estabelecido) gerando espanto, exclamações e naturalmente polêmicas ardentes. No entanto, prova-se a existência de uma dália azul no âmbito do pensamento enérgico e decisivo. Todos os juízos enérgicos, para Bachelard, são juízos negativos. Esse juízos negativos evitam repetir velhas fórmulas de pensamento, velhas afirmações enganosas. Os valores afirmativos não solucionam questões, apenas preenchem o pensamento.

A afirmação, pela ótica de Bachelard, não significa conhecimento positivo. A afirmação da existência de uma dália azul destrói o juízo de valor que atribui outras colorações já determinadas (outras cores além do amarelo, branco ou rosa) para as dálias que enfeitam os jardins. Tal afirmação destrói juízos anteriores, mas impõe uma nova construção do juízo que se faz desta flor; tal afirmação aniquila as aparências da realidade, deixando em aberto a questão da essência. Uma dália azul existe e faz parte da realidade do ser que sabe expor argumentos decisivos. Os fenômenos existem ativos ou passivos, e os passivos estão vagando por aí à espera de quem os descubra.

O juízo da descoberta, ainda pelo ponto de vista de Bachelard, invalidaria certas afirmações plenas, que apenas preenchem e não solucionam as questões que incomodam o ser e sua existência. Observando que as afirmações nem sempre são sinônimos de conhecimento positivo e demonstrando que "a vida psicológica deve ser captada em seus atos, em sua ondulação, não em sua fonte magra e hipotética", o filósofo orienta-me quanto à questão do Conhecimento. Para ele, o Conhecimento, ao ser verbalizado, deve instaurar polêmica, deve ser destruído e construído, sendo que a construção às vezes nunca termina.

O pensamento transmutativo seria portanto a "única positividade clara de um conhecimento”, apreendida na consciência das retificações, nas insinuações, nas persuasões, nas discussões polidas, nas ondulações do pensamento dialético. O conhecimento dialetizado, descontínuo, sob o suporte de um fingido comportamento de continuidade, como por exemplo a falsa aceitação de pensamentos plenos, subentendida em apartes de supostas concordâncias, tais como, também fui dessa opinião, mas... etc, superaria inevitáveis incidentes e promoveria uma demonstração do negativismo psicológico, ou seja, uma temporária negação de suas idéias.

O juízo afirmativo fingido seria uma aceitação provisória e obrigaria o adepto dos valores afirmativos plenos e inteiros a aceitar outros pensamentos que contradissessem os seus. As regras conceituais já determinadas impedem novas conceituações e por isso são criticadas por Bachelard, que prefere desenvolver uma filosofia da aniquilação, propulsora de novos pensamentos que atuarão no devir.

Para Bachelard,

“Todo conhecimento preciso conduz a uma aniquilação das aparências, a uma hierarquização dos fenômenos, ao ato de lhes atribuir de algum modo coeficientes de realidade, ou, se preferirmos, coeficientes de irrealidade. Analisa-se assim o real a golpes de negação. Pensar é fazer abstração de certas experiências, é mergulhá-las voluntariamente na sombra do nada” (Bachelard).

Em outras palavras, um conceito preciso deve impor a marca da recusa de valores pré-estabelecidos, a marca de tudo que se nega em sua incorporação. É preciso anular o vago e o incerto de um fenômeno para, posteriormente, remodelá-lo e fixá-lo. Esta dialetização do conhecimento proporcionaria novos conceitos, libertos dos valores afirmativos, já desgastados, mas mesmo assim considerados plenos e seguros.

Bachelard, procurando dialetizar a questão da distensão, ou seja, a questão do repouso, no qual a inteligência se entrega a sua função especulativa, coloca-se no cerne do ponto de vista funcional, abandonando o ponto de vista ontológico. Assim, retoma o problema, ressaltando o seu aspecto prático, enquanto experiência de vida, para enfim esclarecer que a classificação dos conceitos "em juízos afirmativos e negativos tem um real valor psicológico”, se instituída pela ótica funcional.

Retomando o problema (sempre) pelo ponto de vista funcional, o filósofo ressalta as diferenças entre este ponto de vista e o ponto de vista do Ser, concordando que é impossível, para qualquer pensador, formular um conceito simples sobre o Ser, porque o conceito do ser, pelo ponto de vista do ser, será sempre pleno, e pelo ponto de vista funcional, sempre parcial. Para que o conceito do Ser tenha sentido, o primeiro passo, geralmente, é a submissão a um juízo de valor já pré-estabelecido. Assim, o pensador se submete a uma hierarquização conceitual complexa, oferecida pela tradição, observando camadas e camadas de conceitos complexos sobre o Ser, conceitos já elaborados, sem alcançar um conceito simples e claro que o satisfaça.

“O Ser, mesmo preciso, deve-nos múltiplas provas; não o aceitamos senão depois de uma qualificação diversa e móvel, experimentada e retificada. Assim, o que é deve psicologicamente devir. Não se pode pensar o Ser sem associar a ele um devir gnoseológico. Tomado em sua síntese máxima, o ser pensado deve ser um elemento do devir” (Bachelard)

O conhecimento do Ser exige um conhecimento previamente elaborado, ligado num primeiro momento a um juízo de valor, transmitido de geração a geração. O aspecto gnoseológico da questão, ou seja, o conhecimento da divindade que se transmite por tradição, sustentaria sempre os pensamentos futuros sobre o Ser.

“Inutilmente se tentará, por meio de não se sabe que hierarquia lógica de conceitos, localizar no empíreo imóvel conceitos simples, dotados de uma clareza intrínseca, no cimo dos quais reinaria o conceito do Ser” (Bachelard)

O pensamento exprimiria ações virtuais e reais, e seu ponto culminante seria o momento exato da decisão. O momento decisivo uniria idéia, ação e desenvolvimento da ação, atitudes que não comportam em absoluto sincronicidade, segundo Bachelard. O momento decisivo seria então a concentração da ação (a soma da idéia do pensamento de agir e do desenvolvimento da ação) ou, em outras palavras ainda, seria a unidade desses comportamentos não sincronizados, somada ao absoluto dessa ação. A decisão do pensamento orientaria o gesto posterior, e este ficaria submetido a "mecanismos subalternos não vigiados”.

O conhecimento do Ser, pelo ponto de vista do ser (conhecimento complexo), é inerente ao tempo vivido e não se adéqua ao tempo pensado, totalmente aéreo, livre, matematizado, "tempo onde se inserem as invenções do Ser " (...) " tempo em que o pensamento age e prepara as concretizações do Ser”. Por esta ótica, é importante não confundir o tempo pensado com o tempo abstrato. O tempo pensado é um estágio de realizações, concretizações, clarificações, e, para conceituar o Ser, os conceitos lógicos e simples são inúteis.

O tempo pensado (ou matematizado) impulsionaria o pensador, fazendo-o agir, obrigando-o a iniciar o gesto e a concretizá-lo, já que houve um decisivo consentimento no instante da concentração da ação (impulsionadora desse gesto). A realização de tal gesto é obra do tempo pensado, vigorando acima do tempo vivido (pleno, linear) que não permite um pensamento vertical, se a ação do pensador estiver submetida a seu domínio.

Refletindo sobre o consentimento para agir de Henri Bergson, consentimento este assegurado pela doutrina do cheio, ou seja, do tempo vivido, Bachelard inicia seus pensamentos, acompanhando, num primeiro momento, a explanação bergsoniana sobre o tema. Mas essa adesão só se verifica no início, quando ele focaliza no verbo, à moda bergsoniana, as relações enunciadas por um juízo de valor, algo totalmente diferente da proposta bachelardiana, que opta por procurar as raízes desse consentimento para agir no predicado ou no sujeito, que acarretam, outrossim, o juízo de descoberta. É importante não esquecer que esse consentimento parte do tempo pensado, mas é o início do gesto que direciona a ação.

Bachelard, refletindo a questão, se coloca no meio do verbo, seguindo inicialmente as assertivas bergsonianas, como já foi dito, mas procura reconduzir toda a ação de seu pensamento a seu aspecto decisivo e unitário, instantâneo, diferente da lentidão e multiplicidade do tempo vivido.

O pensador, depois dessa recondução inicialmente bergsoniana, quebra a continuidade em favor de uma hierarquia de instantes. Conceituando inicialmente o Ser sob a orientação de Bergson, ou seja, aceitando o consentimento para agir ligado ao verbo, pela dialética do sim e do não, ele percebe que esse consentimento para agir, pela ótica bergsoniana, é simplesmente um acréscimo artificial, algo secundário na doutrina do cheio. Bergson, mesmo dialetizando o sim e o não, quando acrescenta em seus estudos o consentimento para agir, só desenvolve pensamentos ligados ao sim, ou seja, ao cheio. Bachelard aproveita-se desse descuido, para desenvolver um pensamento transmutativo, contrapondo ao cheio bergsoniano o vazio, provedor de novos pensamentos. Enquanto o consentimento para agir bergsoniano surge como algo secundário na doutrina da interioridade, sincronizada com a vida, enraizada na vida, caminhando junto com a vida, Bachelard busca esse consentimento na essência da própria noção de consentimento, ou seja, numa "teoria que afirma a existência de um pensamento liberado da vida, suspenso acima da vida, suscetível também de suspender a vida”.

Desta forma, qualquer juízo tem de ser julgado, para preparar e medir a relação de causa e efeito no âmbito da psicologia e da biologia. Depois do julgamento, surge a decisão excepcional, direcionando a evolução do pensador.

Assim, o consentimento para agir que, em Bergson, surgiu simplesmente como um acréscimo na doutrina do cheio, em Bachelard, é dialetizado até a exaustão (cheio e vazio), surgindo, no nível do juízo decisivo, como acréscimo funcional, mas, também, como acréscimo essencial, necessário, indispensável.

O juízo decisivo, segundo Bachelard, é necessariamente secundário, mas é, mesmo assim, uma conquista sobre o medo, a dúvida, o erro; ele é secundário, mas necessário, porque a idéia de interpretação transmitida por ele impõe o desejo de continuar, já que a interrupção supõe a noção de término e a possibilidade de não concretização do pensamento.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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