Quer se comunicar com a gente? Entre em contato pelo e-mail neumac@oi.com.br. E aproveite para visitar nossos outros blogs, o "Neuza Machado 2", Caffe com Litteratura e o Neuza Machado - Letras, onde colocamos diversos estudos literários, ensaios e textos, escritos com o entusiasmo e o carinho de quem ama literatura.

sexta-feira, 19 de março de 2010

BACHELARD: PASSAGEM DOS COGITOS - 3


BACHELARD: PASSAGEM DOS COGITOS - 3

NEUZA MACHADO


A questão do tempo do pensamento (Dialética da Duração, Gaston Bachelard) ― pensamento que surge do repouso fervilhante ― tornou-se um ponto importante para certificar as minhas elucubrações teórico-filosóficas análogas à obra de Guimarães Rosa.

Inicialmente, repensando as confirmações de Bachelard, entendi que o repouso fervilhante — antes do pensamento propriamente dito — seria o invólucro de questões amorfas ou díspares, que estariam contidas no íntimo do consciente (da existência do ser) e que não seriam nada tranquilas, já que instaurariam uma ativa tensão cerebral. Por consequência, posteriormente, os pensamentos advindos desse repouso fervilhante estariam livres dos dogmas vitais, e propiciariam novíssimas etapas de duração. O tempo pensado ofereceria uma maior liberdade de ação, de invenções, de criação, de concretizações.

Por esta doutrina do tempo, envolvi-me com as narrativas roseanas, desde o seu início até a fase final, e constatei que elas se organizaram, ao longo de sua produção, em quatro momentos, que se interpenetraram.

No primeiro momento, submetido ao tempo contínuo (tempo da história, da experiência de vida), o Artista Literário encontrou seu impulso narrativo na imaginação formal (forma externa), na novidade da descoberta de um sertão muito próximo de sua vida, mas não devidamente explorado no âmbito da literatura. Desta descoberta da imaginação formal, surgiram as narrativas de Sagarana, cujos narradores (memorialistas) ― ou um único narrador (não confundir narrador memorialista, aquele que se vale das experiências do passado para compor seu universo ficcional, com narrador de livros de memória, cuja proposta é recuperar fielmente o passado) ― se divertem com a variedade de imagens estáveis, intactas desde a infância em suas lembranças.

Ainda submetida à Doutrina do Tempo, sob a orientação bachelardiana, pude observar que, no segundo momento, a partir de A Hora e Vez de Augusto Matraga, o Artista brasileiro e a sua obra estabelecem uma relação dialética com o sertão, sob o comando exclusivo da criatividade ficcional, destacando os contrários como amor e ódio, alegria e tristeza, dentro e fora, sanidade e insanidade, realidade e irrealidade, luz e trevas e outros mais. Verifica-se a partir da citada narrativa uma clara mudança na forma de narrar: a consciência do poder de criação ficcional e o abandono das velhas formas narrativas, ligadas ao ato de reproduzir as experiências de vida dos ancestrais.

Reportando-me novamente à coletânea de narrativas de Sagarana, e aproveitando-me de um excurso de Bachelard em sua Introdução à Dialética da Duração, quando informa não ser sua intenção destacar a etapa pessoal do repouso (vida secreta e sossegada, vida solitária que oferece prazer), passo a refletir o início da obra roseana justamente a partir desta perspectiva. Isto, porque a primeira fase ficcional do Artista realizou-se submetida aos conhecimentos tradicionalmente recebidos, portanto fase ligada ao impulso primeiro da imaginação ainda formal (formal no sentido de invólucro de conceitos pré-estabelecidos).

Bachelard, em seus estudos, não está preocupado com o tempo vital, pois sua temática se liga ao tempo do pensamento. Ele não pretende, em absoluto, "delinear (...) a perspectiva que conduz à vida secreta e sossegada”, perspectiva ligada ao tempo contínuo, histórico, vivido, repleto de paixões; tempo submetido às exigências externas e sociais, às excitações que atraem o homem para fora de si mesmo.

Se Bachelard restringe o aspecto pessoal da questão, revisito o assunto, uma vez que o Artista Guimarães Rosa, em sua fase inicial, procura reproduzir ficcionalmente aspectos de vida de um passado histórico, tendo como referencial o Sertão das Gerais, localizado no Norte do Estado de Minas, fronteiriço ao Sertão da Caatinga, localizado na região do Nordeste brasileiro.

O excurso de Bachelard, logo no início de suas propostas filosóficas, restringindo o aspecto pessoal do repouso, abstendo-se de estudá-lo, alertou-me quanto à questão acima exposta. Guimarães Rosa, inicialmente submetido ao repouso vital e à imaginação formal, invólucro de conceitos pré-estabelecidos, sentiu-se envolvido pelas gratas lembranças da infância, rememorizou extasiado e descansado (linearmente) seu passado histórico, repleto de matéria mítica. Assim, observando as narrativas de Sagarana (as histórias do burrinho pedrês, de Seu Lalino Salãtiel e outras) fixei-me na figura de Nhô Augusto Matraga, já que o personagem representa nitidamente o momento de mudança temporal do próprio Artista. O personagem Augusto Matraga (assim como o narrador) representa também as mudanças mentais do escritor.

Por este aspecto, asseguro que todos sofrem mudanças nesta pequena narrativa: o Artista, o Narrador, o Personagem, o Leitor e o próprio Mundo Narrado. Nhô Augusto, principalmente, revela as nuances mentais do Criador Literário: depois da queda (pessoal e ideológica), fica recuperando-se dos ferimentos na casa dos pretos que o salvaram, recordando a infância, as rezas da infância aprendidas com a avó beata. Neste início, é justamente a vida secreta e sossegada de Nhô Augusto, com todo seu conteúdo passional, que motiva-me raciocinar, para depois alcançar os postulados centrais da filosofia bachelardiana.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

Nenhum comentário:

Postar um comentário