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sexta-feira, 12 de março de 2010

GUIMARÃES ROSA: RESGATANDO LEMBRANÇAS - 2


GUIMARÃES ROSA: RESGATANDO LEMBRANÇAS - 2

NEUZA MACHADO



É válido realçar que qualquer texto (seja o didático: narrativas experientes, tratados de medicina, de filosofia, de religião, ou mesmo o texto-obra) deixa transparecer a dimensão histórica (real e mítica; a mítica sobressaindo-se menos em alguns casos), plano sintagmático, fechado, ideológico.

No texto didático, também conhecido como texto-objeto, de acordo com uma determinada nomenclatura teórica, além das literaturas assinaladas acima, enquadram-se também os textos literários que não alcançam a categoria de texto-arte. A literatura memorialista neste caso seria considerada como texto didático (paraliterário), porque a função do narrador é aconselhar, passar adiante as experiências comunitárias de um determinado núcleo social, incutir nos mais jovens o desejo de glorificar suas raízes valendo-se das experiências de guerra, parábolas moralistas, remanescentes de antigas tradições. Estes textos possuem aparência de literatura, comportam-se como literatura, mas não revelam a autêntica literatura, possuidora, além do plano linear e ideológico, de outras dimensões não-lineares.

Penso nas narrativas experientes, as novelas de procedência oral, como narrativas saídas da imaginação formal, já que estão ligadas ao plano diegético. A imaginação formal, segundo Bachelard, está ligada ao aspecto pitoresco e exterior da realidade, ao acontecimento inesperado, aos fenômenos que estão na natureza à espera de quem os descubra, portanto, teoricamente, ligada ao plano histórico-linear. Este tipo de imaginação expressa unicamente as imagens da forma, as imagens exteriores, ligadas à superfície, traduzindo pensamentos lineares e substanciais.

Por este ângulo, as novelas de cunho oral, remanescentes da Idade Média, memorialistas, moralistas, experientes, pitorescas, se enquadram ao que Bachelard chama de imaginação formal.

Independente de uma postura filosófica totalizante, e considerando também os ensinamentos da Ciência da Literatura, passo a nomear, nesta apreciação crítica, as narrativas diegéticas (e as narrativas de Sagarana, aquelas que antecedem A Hora e Vez de Augusto Matraga, são diegéticas, fechadas, reformuladoras de ideais comunitários, carismáticas e sentimentais) como narrativas pertencentes à imaginação que dá vida à causa formal. Evidentemente, há nelas uma sedução que as torna diferentes, e no entanto esta sedução não é descartada por Bachelard em sua teoria da imaginação formal.

Relendo as narrativas iniciais de Sagarana, encontra-se o impulso primeiro do Artista na novidade da descoberta do sertão, quando este narra submetido às imagens da forma exterior. A estória do burrinho pedrês (primeira narrativa do corpus de Sagarana), por exemplo, possui segmentos lineares e recompõe a dimensão real, marcando o tradicional, o regional, segundo o método de contar estórias.

"(...) um burrinho pedrês, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro ou não (se sabe) onde no sertão" (Sagarana).

O pitoresco da novidade, da novidade de redescobrir o sertão por meio da literatura sintagmática, está visível, e é utilizando-se da imaginação, submetida ao aspecto formal da narrativa, que o leitor acompanha as descrições das minúcias exteriores de um lugar do passado histórico do Artista. É por intermédio dele também que o mesmo compactua com a sua convicção de nativo sertanejo, quando ele se propõe a resgatar imagens encantatórias ligadas ao seu inesquecível passado (universo infantil e juvenil), e com isto passa a acompanhar atento as aventuras de um corajoso burrinho velho, procurando salvar-se do temporal. Narrando as peripécias vividas por Sete-de-Ouros, ele impõe ao leitor a obrigação de apreciar o sertão, enquanto espaço geográfico, apresentando, concomitantemente, a sua razão sentimental transformando-se em causa formal (Bachelard), ao descrever a movimentação dos bois no curral, ao mesmo tempo que passa a sensação de realidade, ou seja, é como se o leitor estivesse vendo realmente toda aquela movimentação.

"Alta, sobre a cordilheira de cacundas sinuosas, oscilava a mastreação de chifres. E comprimiam-se os flancos dos mestiços de todas as meias-raças plebéias dos campos gerais, do Urucúia, dos tombadores do Rio Verde, das reservas baianas, das pradarias de Goiás, das estepes do Jequitinhonha, dos pastos soltos do sertão sem fim. Sós e seus de pelagem, com as cores mais achadas e impossíveis: pretos, fuscos, retintos, gateados, baios, vermelhos, rosílios, barrosos, alaranjados; castanhos tirando a rubros, pitangas com longes pretos, betados, listados, versicolores; turinos, marchetados com polinésias bizarras, tartarugas variegados; araçás estranhos, com estrias concêntricas no pelame — curvas e zebruras pardo-sujas em fundo verdacento, como cortes de ágata acebolada, grandes nós de madeira lavrada, ou faces talhadas em granito impuro” (O Burrinho Pedrês”).

“Como correntes de oceano, movem-se cordões constantes, rodando remoinhos: sempre um vai-vem, os focinhos babosos apontando, e as caudas, que não cessam de espanejar com as vassourinhas. Somam-se. Buscam-se. O crioulo barbeludo, anguloso, rumina, estático, sobre os maus aprumos, e gosta de espiar o céu, além, com os olhos de teor morno, salientes. O espúrio gyr balança a bossa, cresce a cabeçorra, vestindo os lados da cara com as orelhas, e berra rouco, chamando a vaca malabar, jogada para o outro extremo do cercado, ou o guzerate seu primo, que acode à mesma nostalgia hereditária de bois sagrados, trazidos dos pascigos hindus do Coromandel ou do Travancor. Mudo chamado leva o garrote moço a impelir toda uma fileira, até conseguir aproximar-se de outro que ele antes nunca viu, mas junto do qual, e somente, poderá sentir-se bem. E quando o caracu-pelixado solta seus mugidos de nariz fechado, começando por um eme e prolongando-se em rangido de porteira velha, respondem-lhe o lamento frouxo do pé-duro e o berro em buzina, bem sustido e claro, do curraleiro barbatão" (O Burrinho Pedrês).

"De vez em quando, rebenta um tumulto maior. (...) O boieco china se espanta, e trepa na garupa do franqueiro, que foge, tentando mergulhar na massa. Um de cernelha corcovada, boi sanga sapiranga, se irrita com os grampos que lhe arpoam a barriga, e golpeia com a anca, aos recuões. A vaca bruxa contra-esbarra e passa avante o choque, calcando o focinho no toutiço do mocho. Empinam-se os cangotes, retesam-se os fios dos lombos em sela, espremem-se os quartos musculosos, mocotós derrapam na lama, (...), engavetam-se os magotes, se escoram, escouceiam. (...) Agora, se alertam, porque pressentem o corisco. Esperam que a trovoada bata pilão, na grota longe, e então se sobrechegam e se agitam, recomeçando os espiralados deslocamentos” (O Burrinho Pedrês”).

O discurso que dá vida à imaginação formal, exterior, é ágil, para simbolizar o movimento dos bois no curral, enquanto que o discurso que dá vida à imaginação interior, ainda formal, ou seja, que procura reconstituir a vida do burrinho sem muito aprofundamento, é moroso, para simbolizar a movimentação lenta do animal.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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