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segunda-feira, 19 de abril de 2010

1.8 – GUIMARÃES ROSA: AS MENSAGENS DO SILÊNCIO


1.8 – GUIMARÃES ROSA: AS MENSAGENS DO SILÊNCIO

NEUZA MACHADO



“E, pois, foi aí que a coisa se deu, e foi de repente: como uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo de grau em grau — um ponto, um grão, um besouro, um anú, um urubú, um golpe de noite... E escureceu tudo.

Nem houve a qualquer coisa que de regra se conserva sob as pálpebras, quando uma pessoa fecha os olhos: poento alumbramento róseo, de dia; tênue tecido alaranjado, passando em fundo preto, de noite, à luz. Mesmo no escuro de um fogo que se apaga, remanescem seus vestígios, uma vaga via-láctea a escorrer; mas, no meu caso, nada havia. Era a treva, pesando e comprimindo, absoluta” (“São Marcos”, Sagarana).

A coisa se deu de repente e o narrador consegue significar este momento com rara sensibilidade: a cegueira brilhantemente simbolizada por uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo de grau em grau. No primeiro momento, impacto inicial, apenas um ponto preto; no segundo instante, um pequeno grão preto, um pouco maior que um ponto; no terceiro, um besouro preto, maior que um grão; um anú preto, maior que um besouro; um urubú; e, por último, um golpe de noite.

O narrador busca dar forma aos seus devaneios de intimidade sobre o sertão. "São Marcos" é um somatório das perspectivas que sustentam os devaneios do repouso (a anulada, característica do discurso-reportagem; a dialética, Como será o deus das formigas?; e a maravilhada, figuras coloridas), já em vias de ultrapassar os próprios limites e alcançar os devaneios da vontade, devaneios infinitos de uma riqueza infinita (Bachelard). Agora, prestes a penetrar no mundo fechado, na treva absoluta, precisa readquirir o domínio do que o envolve, para que possa sentir e reproduzir as próprias sensações.

“Era a treva, pesando e comprimindo, absoluta. Como se eu tivesse preso no compacto de uma montanha, ou se muralha de fuligem prolongasse o meu corpo. Pior do que uma câmara-escura Ainda pior do que o último salão de uma gruta, com os archotes mortos. (...) Devo ter perdido mais de um minuto, estuporado. Soergui-me. Tonteei. Apalpei o chão. Passei os dedos pelos olhos; repuxei a pele — para cima, para baixo, nas comissuras — e nada! Então, pensei em um eclipse totalitário, em cataclismos, no fim do mundo” (“São Marcos”, Sagarana).

Neste trecho, observa-se uma nítida mudança de discurso. Surge a descoberta de novas possibilidades de narrativa. As figuras coloridas da narrativa linear darão lugar aos devaneios infinitos de quem ouve e sente ao invés de olhar. Porque, mesmo no escuro e sozinho, o narrador continuou ouvindo "a debulha de trilos dos pássaros: o patativo, cantando clássico na borda da mata; mais longe, as pombas cinzentas, guaiando soluços". O narrador não vê, mas sente, ouve e nomeia a cor da pomba (pomba cinzenta); as imagens dinâmicas não reproduzem a coloração vibrante das imagens do repouso ativado. Se não há mais possibilidade de mostrar a beleza exterior do patativo (passarinho), faz-se necessário apreender a característica clássica de seu canto; o canto do patativo lembra, portanto, as peças musicais da estética clássica. Os devaneios do Artista Literário do século XX que se encontra no escuro (no plano do vazio criador) ressaltam o poder misterioso e contínuo dos fluidos anímicos, os quais se apoderam do Criador ao reconhecer a Poesia (essência) que vigora no espaço da matéria amorfa ainda não-nomeada. É lícito, portanto, que o narrador, ao se ver sem visão, pense em fim do mundo. Realmente, é o fim do mundo ordenado e o começo de um novo mundo sem fronteiras estabelecidas.

“E, aqui ao lado, um araçari, que não musica: ensaia e reensaia discursos irônicos, que vai taquigrafando com esmero, de ponta de bico na casca da árvore, o pica-pau chanchã. E esse eu estava adivinhando: rubro-verde, vertical, topetudo, grimpando pelo tronco da imbaúba, escorando-se na ponta do rabo também. Taquigrafa, sim, mas, para tempo não perder, vai comendo outrossim as formiguinhas tarús, que saem dos entrenós da imbaúba, aturdidas pelo rataplã” (“São Marcos”, Sagarana).

Os adivinhos são aqueles a que se atribuem faculdades divinatórias: o demiurgo começa a materializar-se, começa a negar criativamente as anteriores narrativas, afirmando a agitação íntima que de ora em diante passará a dominá-lo.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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