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domingo, 2 de maio de 2010

3.5 – GUIMARÃES ROSA: DEPOIS DO ILUMINADO LEILÃO



3.5 – GUIMARÃES ROSA: DEPOIS DO ILUMINADO LEILÃO

NEUZA MACHADO



A mão do Artista exigiu uma matéria subjetiva (o fogo) para moldar o novo sertão, que aos poucos se faz visível. Contemplativo, ele recorda as lamparinas de querosene ou azeite que iluminaram as noites de sua infância. As chamas do passado acendem a sua imaginação, forçam-no a adotar um novo método discursivo.

Depois do iluminado leilão, depois da marca do ferro-em-brasa, depois da queda social e pessoal, só resta ao personagem recuperar-se, contemplando pensativamente o brilho da chama benta.

O fogo permite a revalorização do personagem, sua total transformação no universo narrativo. O fogo promove a separação entre mal e bem, entre mau e bom. O antigo Nhô Augusto, marido de Dionóra, que matava sem remorsos, transforma-se num personagem carismático, virtuoso, em busca do reino do Céu.

“Nunca é demais observar que o fogo representa mais um ser social do que um ser natural. Para se ver o fundamento desta observação desnecessária se torna desfiar considerações acerca do papel do fogo nas sociedades primitivas, nem insistir nas dificuldades técnicas da sua manutenção; basta que façamos psicologia positiva, examinando a estrutura e a educação de um espírito civilizado. Na verdade, o respeito pelo fogo é um respeito ensinado; não é um respeito natural. O reflexo que nos faz retirar o dedo da chama de uma vela não desempenha nenhum papel consciente no nosso conhecimento. (...) Na realidade, o que surge primeiro são as proibições sociais. A experiência natural só vem depois, para nos fornecer uma prova material inesperada, portanto demasiado obscura para dar lugar a um conhecimento objetivo. A queimadura, ou seja, a inibição natural, ao confirmar as proibições sociais, nada mais faz do que reforçar aos olhos da criança o valor da inteligência paterna. Há, portanto, na origem do conhecimento infantil do fogo uma interferência do natural e do social em que este último domina sempre” (Bachelard).

O respeito pelo fogo é um respeito ensinado, diz Bachelard. "O pavio, a tremer, com brilhos bonitos no poço de azeite, contando histórias da infância", revela os ensinamentos religiosos da avó beata, que "queria o menino p'ra padre...” (A Hora e Vez de Augusto Matraga). As proibições religiosas da infância, esquecidas pelo adulto sanguinário, ressurgem a partir do sofrimento promovido pela marca do ferro-em-brasa e da observação da chama da vela benta. A queimadura do ferro ardente reforça as proibições religiosas, os castigos, reacendendo os antigos ensinamentos da avó.

O Artista, submetido temporariamente ao devaneio do fogo, se encontra numa zona intermediária no seu processo de criação literária. O narrador experiente das primeiras narrativas (apenas observador do sertão) começa a ceder seu lugar ao narrador moderno (alter ego do pensador do sertão), desorientado e questionador, como o quer Benjamim (cf. O NARRADOR), autêntico reflexo da desestruturação do mundo atual. O fogo, como elemento de punição do personagem, explicita as transformações assinaladas. Estas transformações representam o início dos novos acontecimentos, ao longo da narrativa, mas constituem também a mudança no plano da criação artística.

O fogo, como elemento de interseção, na criação literária roseana, se destaca em A Hora e Vez de Augusto Matraga. Surge várias vezes em Grande Sertão: Veredas, iluminando o cenário, mas os elementos realmente acasalados desta narrativa aqui assinalada são a terra e água, amalgamadas dinamicamente, promovendo profundas reflexões no personagem-narrador.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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