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sexta-feira, 28 de maio de 2010

8.1 - SERTÃO: SOFRIMENTO E CONFLITO


8.1 - SERTÃO: SOFRIMENTO E CONFLITO

NEUZA MACHADO


“Seria um longo problema encontrar uma química sentimental que nos faria determinar a nossa perturbação íntima através de imagens no âmago das substâncias. Mas essa extroversão não seria vã. Ela nos ajudaria a colocar nossos sofrimentos "para fora", a fazer nossos sofrimentos funcionarem como se fossem imagens” (Gaston Bachelard).

Se a química da hostilidade produziu uma face de Riobaldo repleta de valentia e poder, a química sentimental refletirá a face do jagunço amoroso, ao longo da narrativa do amor não concretizado. Parodiando Bachelard (páginas bachelardianas sobre a matéria fogo), posso inferir: se Riobaldo é a maior tentação do Artista, Diadorim é a tentação maior de Riobaldo. Destacando-se o fato de o jagunço Diadorim se comportar como homem em mais de quinhentas páginas, e, mesmo sabendo-se que Riobaldo, na velhice, já tem conhecimento de toda a verdade, ou seja, que Diadorim era na realidade mulher, as lembranças desse amor ainda incomodam o personagem-narrador. Assim, sob a magnificência da Literatura, importam muito mais as horas de aflição e remorso vividas pelo personagem, o mítico macho que ama um outro homem. A química sentimental extravasa, nesta narrativa, a perturbação íntima do Artista, seu conflito de homem sertanejo e ao mesmo tempo moderno; denuncia um ser fragmentado: homem por excelência, repleto dos valores do sertão, mas, hoje impregnado dos valores modernos e conhecedor dos aspectos femininos que fazem parte da natureza masculina e vice versa, dualidade esta hábil e ambiguamente destacada em Diadorim.

A química sentimental em Grande Sertão: Veredas também substancializa um combate. A intimidade do guerreiro Riobaldo está indiscutivelmente abalada. A agitação ativa desse amor simboliza o conflito da intimidade do Artista moderno brasileiro: o homem nato do sertão e seu poder masculino conflituado por deixar entrever a essência pura da sensibilidade estética com suas nuanças femininas.

Bachelard auxilia-me:

“Aqui está, para acabar de uma vez com essas pobres imagens, uma página que não teremos dificuldade em psicanalisar, mediante um simples sorriso. Ela é tirada de uma obra de tom sério, de uma obra que nunca se afasta da maior seriedade. Se olharmos ao microscópio, diz Hemsterhuis, o líquido seminal de um animal, há vários dias sem se aproximar de uma fêmea, encontraremos "um número prodigioso dessas partículas, ou desses animálculos de Leeuwenhock, mas todas em repouso e sem o menor sinal de vida". Façam, ao contrário, com que uma única fêmea passe diante do macho antes do exame microscópico, então "encontrarão todos esses animálculos não só vivos, mas nadando todos no líquido, que aliás é espesso, com uma rapidez prodigiosa". Deste modo, o sério filósofo confere ao espermatozóide todas as agitações do desejo sexual. O ser microscópico registra os incidentes psicológicos de um espírito "agitado" pelas paixões” (Bachelard).

Esta citação bachelardiana é indispensável, para explicar os sentimentos conflituosos de Riobaldo por Diadorim. A rejeição, a angústia, o nojo do por tal sentimento são insuficientes para destruir o amor.

Senão, vejamos:

“(...) ele estava ali, mais vindo, a meia-mão de mim. E eu — mal de não me consentir em nenhum afirmar das docementes coisas que são feias — eu me esquecia de tudo, num espairecer de contentamento, deixava de pensar. Mas sucedia uma duvidação, ranço de desgosto: eu versava aquilo em redondos e quadrados. Só que coração meu podia mais. O corpo não traslada, mas muito sabe, adivinha se não entende” (Grande Sertão: Veredas).

O coração do personagem pode mais, e seu corpo adivinha a essência natural feminina exalando do macho Diadorim. O lado sexual do homem (seus espermas) percebe e responde ao chamado feminino, também ativado. Os sentimentos amorosos do personagem estão dinamizados pelo cheiro da fêmea, socialmente masculinizada. Os sentimentos estão em ebulição, estão vivos, porque o demiurgo conhece os segredos de sua criação; o Criador pode mais que o coração de sua criatura, pois conhece o poder da paixão por ele idealizada e produzida.

Descrevendo essa paixão, o Artista desenvolve sintagmaticamente um manual de moralidade, destaca as regras básicas do mítico sertão, nas quais se insere o adágio popular, reafirmador de velhas ideologias, homem com homem dá lobisomem, e outros provérbios reformuladores desta mesma orientação de moral. Questionando essa paixão, o Artista ultrapassa paradigmaticamente o ensinamento conceitual, desenvolvendo profundas reflexões sobre o amor e seus diversos níveis. Sua perturbação íntima reflete (extra-texto) a perturbação do homem do século XX, abalado em seu poder, cedendo às exigências da fêmea, que disputa com ele um lugar no cenário sócio-econômico. Reafirmando tal ponto de vista, reforço que esta é uma interpretação extra-texto, uma vez que o narrador procura resgatar velhas tradições e ideologias.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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