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sábado, 29 de maio de 2010

8.2 - SERTÃO: SOFRIMENTO E CONFLITO


8.2 - SERTÃO: SOFRIMENTO E CONFLITO

NEUZA MACHADO



O mundo do sertão e seus personagens refazem antigas ideologias, mas o narrador (ou um lado do mesmo) é moderno, ou seja, suas reflexões existenciais são uma projeção da modernidade, portanto passíveis de serem questionadas pelo leitor.

O Artista, nesses questionamentos de Riobaldo, coloca seus sofrimentos para fora, como orienta Bachelard. Suas angústias de homem moderno, nativo do sertão, encontram respostas nas indagações de seu personagem. Analisando o amor como coisa feia (amor entre homens) e, no final, mostrando que, em verdade, Reinaldo/Diadorim é Maria Deodorina, analisa exatamente a química do amor, pois dois seres diferentes (homem e mulher) não se enganam, quando o assunto é uma mútua sensibilidade afetiva. Por estas razões, intuitivamente, o personagem concebia sempre um instante de esquecimento das coisas racionais, uma duvidação, versando seus pensamentos em redondos e quadrados, provando inconscientemente que o coração não se engana.

Esse sentimento reflete a luta entre os álcalis e os ácidos, de acordo com a filosofia bachelardiana, a luta entre o feminino e o masculino, entre os opostos que se amam e não sabem que são opostos, já que a realidade cotidiana os colocou como iguais no cenário da vida.

Ainda Bachelard:

“O homem saudável, para Hipócrates, é um composto equilibrado de água e fogo. À menor indisposição, a luta dos dois elementos hostis recomeça no corpo humano. Um surdo conflito manifesta-se ao menor pretexto. Assim poderíamos inverter a perspectiva e preparar uma psicanálise da saúde. A luta central seria captada na ambivalência do animus e da anima, ambivalência que instala em cada um de nós uma luta de princípios contrários” (Bachelard).

Reportando-me às minhas reflexões sobre os elementos na obra roseana, afirmei anteriormente que os elementos eleitos eram a terra e a água amalgamadas. Afirmei também que o fogo aparece como matéria de transição, a partir da narrativa A Hora e Vez de Augusto Matraga, alcançando o ápice dessa fase na narrativa ficcional Grande Sertão: Veredas.

Reafirmo esta fase operada pelo fogo em ebulição, que levará o Artista Guimarães Rosa a uma nova reavaliação de seus elementos eleitos (terra e água), ainda amalgamados, mas agora submetidos a uma visão profunda dessas mesmas matérias. Em outras palavras, depois da transição operada pelo fogo, ele irá penetrar no cerne desses elementos, revelando sua interioridade, para posteriormente projetar-se no imaginário-em-aberto (cogito(4)), simbolizado pelo elemento ar. Este elemento seria, de acordo com a minha inclusiva e exclusiva visão, um novo elemento de transição para o cogito(4), domínio que inclui a ficção, distante temporalmente dos três cogitos normais da existência ordinária.

Retomando a citação, posso inferir que há em Riobaldo (personagem saudável e com sentimentos amorosos saudáveis) o composto equilibrado da água e do fogo, seguindo a teoria de Hipócrates, reafirmada por Bachelard: a água, simbolizando a pureza de seus sentimentos amorosos por Diadorim, e o fogo, simbolizando o seu lado belicoso. A indisposição é o seu amor impossível pelo também belicoso amigo. O engano histórico (ligado ao plano da reprodução e não da criação literária) promove o conflito de Riobaldo, possibilita o pretexto para que o Artista desenvolva páginas e páginas de reflexão sobre esse amaldiçoado amor. O saudável personagem, com o seu composto de água e fogo equilibrado, ou seja, homem em toda a extensão da palavra, é um ser intimamente frágil, quando se trata de sentimentos amorosos.

Penso agora na luta central, captada na ambivalência do animus e da anima. Penso primeiro na anima, como alma, espírito ou mesmo outras significações que a reforçam, de acordo com o momento histórico e seus valores: mente, índole, coragem, valor, gênio, resolução, vontade, força, intenção. O animus embala e acalenta a intenção, ou seja, a anima.

O animus de Riobaldo embala e acalenta seu amor pelo jagunço Diadorim, e há uma ambivalência (sentimentos opostos) prejudicando esse amor: os sentimentos feios de Riobaldo não se ajustam aos sinceros sentimentos de Diadorim, já que este tem acesso à sua condição de mulher, e aquele, no plano da História, não conhece esse fato, apenas o pressente.

O animus de Riobaldo, prejudicado por essa ambivalência, apenas dele e não de Diadorim, reforça sua anima belicosa (sua índole, sua coragem, sua força, sua vontade de matar, por exemplo); seu animus é pura intenção: de ferir, ofender, atacar (animus laedendi); de matar (animus necandi); de possuir a coisa, o amor de Diadorim, por exemplo (animus rem sibi habendi); assim, anima e animus instalados no interior do personagem, representando a luta dos sentimentos condenados.

O Artista literário apropria-se desses sentimentos contrários, recobrindo-os e, ao mesmo tempo, desvelando-os com as imagens singulares de sua imaginação agitada. Se a sua imaginação está agitada, é porque o seu interior está agastado, sofrendo os males da modernidade, ansiando por um mundo perfeito, já conhecido pelo passado infantil. As imagens desse conflito estão dinamizadas, porque ele se vale do dinamismo próprio das crianças; recorda as estórias da infância, colocando nelas as suas angústias de adulto. A história linear refaz a ideologia sertaneja, enfraquecida pelo advento da modernidade, mas as longas meditações do personagem revelam as lutas interiores do homem restrito às leis degradadas da sociedade moderna.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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