Quer se comunicar com a gente? Entre em contato pelo e-mail neumac@oi.com.br. E aproveite para visitar nossos outros blogs, o "Neuza Machado 2", Caffe com Litteratura e o Neuza Machado - Letras, onde colocamos diversos estudos literários, ensaios e textos, escritos com o entusiasmo e o carinho de quem ama literatura.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

10.7 - A TEMÁTICA DA ÁGUA


10.7 - A TEMÁTICA DA ÁGUA

NEUZA MACHADO



Bachelard, em A Terra e os Devaneios do Repouso, ao se referir à "perspectiva de intensidade substancial infinita”, desenvolve o tema das relações dialéticas da cor e da tintura, demonstrando que a cor é uma sedução das superfícies, enquanto que a tintura é uma verdade das profundezas.

Para o filósofo, a água não fornece com exatidão as imagens dinâmicas da tintura, por ser uma substância acolhedora, fraca e passiva; mas a água da narrativa “A terceira margem do rio” (Primeiras Estórias) sugere um caudal de emoções profundamente reprimido, e isto se deve a uma genial gota de tintura dramática (elemento alquímico/criativo) na superfície colorida do rio.

“Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta” (“A terceira margem do rio”, Primeiras Estórias).

Ao intuir a narrativa, o Artista intuiu também, além da dialética do visível e do invisível (cor e tintura), a dialética do raso e do profundo. O rio beirando as imensidões do não-dito: o rio fundo, calado que sempre. A gota de tinta modifica a fragilidade da água, valorizando o sonho líquido do escritor, aumentando as belezas do sertão, a amplidão, as profundezas da água, as lembranças do filho/narrador. A gota de tintura, diferente da cor da água, revela verdades profundas, muito além da sedução da cor da superfície. Nesta gota estão as recordações do nativo do sertão, porque o pai da narrativa é o próprio sertão, sempre presente na ausência, já que foi desmerecido no passado.

O elemento material da narrativa, submetido ao poder da imaginação criadora que sonha o sertão, é a água. O relaxamento dos olhos e a vontade da mão encontraram a substância acolhedora e, ao mesmo tempo, dinamizadora, que proporcionou ao escritor ficcionista Guimarães Rosa as imagens de uma terceira margem, nascidas dos devaneios da tintura íntima.

De acordo com Bachelard, a cor é diferente da tintura, porque apenas seduz o olhar que vê a superfície. A tintura deixa sobressair um aspecto diferente da narrativa, uma verdade imperecível, resgatada das profundezas. Essa verdade evola de suas convicções íntimas, e não é apenas líquido colorido, indutor de imagens fracas e passivas. Esta tintura alquímica, misturada à água, forma a poética específica de "A terceira margem do rio", dinamizando a poética da água.

Recordando os rios do sertão, o Ficcionista de origem sertaneja intuiu esta terceira margem insólita, espaço propiciador da compreensão da figura do Pai, fragilizada ante a face autoritária da Mãe. A fraqueza do pai, contrapondo-se à força de comando da mãe, adquire poder inusitado, inumano, em contato com esta água dinâmica.

Dentro de uma frágil canoa, este pai (também frágil) enfrenta os perigos de um rio sonhado em profundidade. O discurso diferente deixa transparecer a idéia de uma terceira margem, representando a materialização do devaneio criador. As imagens insólitas (imagens imaginadas) saem do fundo do imaginário-em-aberto do Artista; saem de sua profunda solidão (solidão aqui no sentido histórico) de homem do século XX que não compactua com as exigências do mundo real. Com o apoio desta materialização, o leitor alcança também os domínios desta margem insólita, alcança as primeiras trilhas da reflexão filosófica, propagadora da idéia de um tempo instantâneo, suspenso entre o antes e o depois. Esta terceira margem é a materialização desse tempo instantâneo. Dentro desse tempo, e fiel às recordações da infância, ele cria um espaço sem limites demarcados, insólito, mas verossímil, aceitando-se a lógica do absurdo. Dentro desse espaço e tempo, aparentemente ilógicos, o pai pode viver anos e anos dentro de uma canoa, transformando-se em espectro, sem macular a veracidade das lembranças do filho.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

Nenhum comentário:

Postar um comentário