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quinta-feira, 8 de julho de 2010

13.6 - O ELEMENTO AR: A DIALÉTICA DA ALEGRIA E DA TRISTEZA


13.6 - O ELEMENTO AR: A DIALÉTICA DA ALEGRIA E DA TRISTEZA

NEUZA MACHADO


Em "As margens da alegria" (Guimarães Rosa), a simples morte do peru não desperta emoções profundas no âmago do leitor. O que emociona realmente é a dialética da alegria e da tristeza, enquanto narrativa criativamente elaborada sob a forma de ficção. Neste intervalo de sofrimento, as cores continuam fundamentais na obra roseana. O velame-branco, de pelúcia (um macio capim), transforma-se apenas numa planta desbotada, conotando os sentimentos negros do Menino; o buriti, à beira do corguinho, já não possui o encanto inicial, uma vez que a tristeza pela morte do peru o impele apenas a visualizar vagas árvores e um ribeirão de águas cinzentas.

Debaixo do peso dos negros pensamentos, o anterior encantamento da descoberta do desconhecido transforma-se num encantamento morto e sem pássaros. A real morte do peru não é o motivo central da tristeza do Menino, o que o entristece é o medo do mundo maquinal. O peru de terreiro sempre existiu e sempre foi sacrificado como alimento do homem nas diversas solenidades. Tanto isto é verdade, que o próprio personagem reflete, ao deparar-se com as penas do peru, no chão do terreirinho: "— Ué, se matou. Amanhã não é o dia-de-anos do doutor?". O que denota (ou conota?) imensa tristeza é a certeza de que as coisas do mundo são passageiras, que a própria vida é um rápido momento de passagem pela terra.

O peru e seu desaparecer no espaço, no grão nulo de um minuto, simboliza o medo do homem ante a certeza da morte. Do peru restaram as penas e a cabeça degolada, atiradas ao monturo, vítima das bicadas de outro peru. Do homem, depois de morto, restarão as cinzas misturadas à terra, e o esquecimento dos vivos.

Para o Artista moderno, nato do sertão, a visão da grande cidade é uma visão hostil. O Menino-personagem capta esta hostilidade, capta os sentimentos de quem quer contradizer as aparências, denunciar os males do progresso. O personagem faz essa denúncia, já que é ele, situado no espaço narrativo, que sente o medo secreto das descobertas de seu Criador.

“Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo secreto: descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço; e que entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia. Abaixava a cabecinha” (Guimarães Rosa, “As margens da alegria”, Primeiras Estórias).

O que se destaca neste trecho é a oposição entre o mundo velho, com seus valores de uso (o mundo do sertão, das primeiras fases ficcionais de Guimarães Rosa), e o mundo moderno. O antigo menino do sertão abaixa a cabeça, impotente ante a destruição dos puros valores recebidos na infância. De ora em diante, as imagens da infância sofrerão a influência da luta entre o homem do sertão (ou o sertão?), vagando eternamente numa canoinha-de-nada (conf. "A Terceira Margem do Rio"), sustentado pela imaginação dinâmica e aérea, e o homem da cidade, com suas culpas e medos, imprensado num mundo sem perspectivas existenciais.

O ato criador continuará sua trajetória (sua interação ficcional com a realidade) submisso ao comando da perspectiva substancial infinita.

“De volta, não queria sair mais ao terreirinho, lá era uma saudade abandonada, um incerto remorso. Nem ele sabia bem. Seu pensamentozinho estava ainda na fase hieroglífica. Mas foi, depois do jantar. E — a nem espetaculosa surpresa — viu-o, suave inesperado: o peru, ali estava! Oh, não. Não era o mesmo. Menor, menos muito. Tinha o coral, a arrecauda, a escova, o grugrulhar grufo, mas faltava em sua penosa elegância o recacho, o englobo, a beleza esticada do primeiro. Sua chegada e presença, em todo o caso, um pouco consolavam.

Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era: já o vir da noite. Porém, o subir da noitinha é sempre sofrido assim, em toda parte. O silêncio saía de seus guardados. O menino timorato aquietava-se com o próprio quebranto: alguma força, nele, trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe alma” (Op. cit.).

O ato criador (ficcional) das substâncias dinamizadas continuará revelando as dialéticas do mundo: alegria e tristeza, amor e ódio, bem e mal; continuará revelando as substituições que consolam, e, sobretudo, continuará revelando o “silêncio saindo de seus guardados”, objetivando denunciar a proximidade do Caos. As matas serão destruídas em nome do progresso, os verdadeiros valores humanos também, mas o céu continuará estranhamente azul, os narradores continuarão a existir e pequenos “vagalumes” continuarão a voar na noite escura, vindos das raras matas, como se fossem minúsculos focos de esperança.

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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