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terça-feira, 20 de julho de 2010

16.5 - SÉCULO XX: NARRATIVAS DE ACONTECIMENTO - OS CHAPÉUS TRANSEUNTES

16.5 - SÉCULO XX: NARRATIVAS DE ACONTECIMENTO - OS CHAPÉUS TRANSEUNTES

NEUZA MACHADO

Em "Os chapéus transeuntes" (G. Rosa, Estas Estórias), por exemplo, recriando a estória do Vovô Barão, o muito chefe da família dos Andrades Pereiras Serapiães, que se preparava para falecer, o Ficcionista de origem sertaneja mostra o alto estágio de aprofundamento psicológico/mental de seus últimos anos de vida. Idealizando a vida ficcional do Vovô Barão, ele pode escavar o fundo de seu próprio ser sertanejo, pode encontrar nessa escavação o primitivo e o eterno; pode, enfim, dominar sua própria história pessoal, sua própria época, a história de seus ancestrais mineiros e, assim, alcançar a síntese criadora de imagens ficcionais ímpares.

Para finalizar esta minha incursão reflexiva nos domínios ficcionais de Guimarães Rosa, manifesto a importância de se observar essas pequenas frases, reveladoras de imagens grandiosas:

Sobre a família de Vovô Barão:

“(...) nós outros, os Dandrades Pereiras Serapiães, anchos em feliz fortuna e prosápia, como as uvas que num cacho se repimpam (...)” (Guimarães Rosa, op. cit.).

Sobre a narrativa do neto-narrador, comentando a chegada de outros familiares para a iminência de morte do Vovô:

“Vínhamos, pois, não pro nobis, mas por respeitos temporais. Vão ver. Aquilo, aliás, preenchia uma lacuna. (...) A família é uma transação de olhos e retratos, frise-se; nem de leve se dê que, eu, da minha eu zombe. Se é, não será; como não digo. Supro-me em simpatia e responsável solidário com todos os seus jeitos; até mesmo, e de mui modo particular — dado certo vultoso acontecimento do meu coração, de que pronto falarei e já por isso ardo — com tio Nestòrionestor, herói meu de ingrata causa, postiça, cediça. Se possível, então, fixe-se, daqui, o sério, de preferência — no querer crer. Que o mais, normal também, decorre tão-só do espírito-falso da gente, por mais e menos: reside na mentira essencial dos seres personagens. A gente não vê quando vai à lua. Quem sabe a letra da música do galo? Oh espantosa vida. Coisa vulgar é a morte” (Guimarães Rosa, op. cit.).

Sobre a figura do Vovô Barão:

“(...) solitário intacto e irremissivo, ainda que de si dando o que falar: como é destino das torres sobressair, e dos arrotos. Supremo no arrogar-se suma primazia, ferrenho em base e hastes, só aceitava, mesmo a nossa presença — de nós, os parentes, os descendentes, digo — quando com solenidade ou cachaça. Aproximar-se dele era a calamidade sem causa. (...) Seguro, absoluto, de si, esquecido demais do caos original e fechado aos evidentes exemplos do invisível, não sabia o que, no fundo, temia tanto; de modo que, por isso, se estuporava todo em integrado e graúdo. A poesia caíra dele, para sempre, como o coto de seu umbigo dessecado. Era um homem pronominal. Fazia questão de história e espaço” (Guimarães Rosa, op. cit.).

O discurso anormal, insólito, estranho, seja que denominação queiramos dar às características discursivas de Guimarães Rosa, nesta sua última fase criadora, é o discurso de quem já se transportou para os domínios da pura imaginação. A estória do Vovô Barão e de seu incaricaturável criado Bugubu, chamado também o Ratapulgo, é uma estória que produz profundas comoções na alma do leitor. O elemento ar dinamiza as figuras do Vovô e seu criado, sublima-as, trazendo a lembrança de outros seres idênticos, que povoaram a própria existência do leitor. Quantos Vovôs e quantos Ratapulgos cruzaram caminhos vitais e não houve sequer como dar-lhes forma biográfica. Guimarães Rosa, em sua última fase, violenta o leitor criativamente, desnudando suas próprias inquietações existenciais, ao revelar seus personagens nascidos de suas íntimas inquietações.

O escritor do ar não observa as coisas triviais da existência; observa a existência suspensa no tempo do pensamento. Sua imaginação “deforma as imagens ficcionais, para que a “ação imaginante do leitor dê uma formalização ao que foi intuído no decorrer da leitura. O elemento ar, ligado ao imaginário, abre o psiquismo para a experiência da novidade que vem dos “raros clarões do espírito” (Bachelard). Entretanto, nas narrativas de Guimarães Rosa, o elemento ar não produz imagens evasivas, ligadas ao devaneio de quem se deixa levar à deriva. O elemento ar, ao contrário, adquire uma vivacidade diferente, mostra o dinamismo de uma imaginação singular, os matizes imperceptíveis do colorido da vida.

“A verdadeira viagem da imaginação é a viagem ao país do imaginário, no próprio domínio do imaginário. Não entendemos por tal uma dessas utopias que nos dão de uma só vez um paraíso ou um inferno, uma Atlântida ou uma Tebaida. É o trajeto que nos interessaria, e o que nos descrevem é a estrada. Ora, o que queremos examinar (...) é na verdade a imanência do imaginário no real, é o trajeto contínuo do real ao imaginário” (Bachelard).

O Vovô Barão e seu criado são criação literária, não representam biograficamente pessoas que nasceram, viveram e morreram, mas conduzem a realidade da narrativa. A estória do Vovô se submete à lenta e produtiva deformação da imaginação criadora, porque o criador adquiriu muitos talentos em sua vida, viajou pelo mundo, conheceu diversos costumes e tradições. O homem que nasceu em uma região sertaneja contemplou o seu próprio trajeto de vida, ascensional, e pode renovar seus sonhos, reelaborar as velhas tradições que pautaram a sua educação.

“No reino da imaginação, o infinito é a região em que a imaginação se afirma como imaginação pura, em que ela está livre e só, vencida e vitoriosa, orgulhosa e trêmula. Então as imagens irrompem e se perdem, elevam-se e aniquilam-se em sua própria altura. Então se impõe o realismo da irrealidade. Compreendemos as figuras por sua transfiguração. A palavra é uma profecia. A imaginação é, assim, um além psicológico” (Bachelard).

A narrativa "Os chapéus transeuntes" projeta um Vovô inteiro, visto de longe, do alto, de um presente que resgata um passado histórico e distante temporalmente da realidade do momento. É um Vovô transfigurado o que é apresentado pelo neto-narrador. Ele fazia questão de história e espaço, não de copiosidade biográfica, já que ele vivia no tempo das pirâmides, isto é, de tão egocêntrico, ele se colecionava. O ficcionista sertanejo materializa um Vovô imaginário, porque ele conseguiu subir os degraus do tempo do pensamento e ascender ao cogito(3) da consciência pura; conseguiu enfim sublimar a própria realidade ficcional criada por ele, ou seja, passar o sertão das matérias sólidas para uma matéria gasosa. A ascensão ao concreto da forma literária saiu de sua própria realidade íntima e fez parte de um princípio e de uma ordenação renovadas pelo juízo de descoberta; ligou-se às leis de sua infância e experimentou as sensações ímpares que só uma sensibilidade ímpar pode experimentar. O homem do sertão renovou seu rosto primitivo e suas máscaras existenciais no mundo da ficção, ou melhor, no mundo repleto de dinamismo positivo do elemento ar. O narrador do sertão subiu os degraus do tempo do pensamento e cresceu psiquicamente para além das fronteiras vitais e, em sua ascensão ao concreto da forma literária, vivenciou verdadeiramente as imagens e palavras de suas últimas narrativas. Não pode experimentar a transcendência, porque seria impossível abandonar em vida o plano vital da existência ordinária, mas conseguiu descobrir as idéias renovadas que saem dos vagos clarões do espírito. Esse narrador do sertão,

“De repente, morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas. Morreu, com modéstia. Se passou para o lado claro, fora e acima de suave ramerrão e terríveis balbúrdias...” (In: Discurso de Posse do escritor na Academia Brasileira de Letras).

MACHADO, Neuza. Do Pensamento Contínuo à Transcendência Formal. Rio de Janeiro: NMachado / ISBN: 85-904306-1-8

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