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quinta-feira, 31 de março de 2011

CLARICE LISPECTOR - UM “AMOR” DE NARRATIVA

CLARICE LISPECTOR - UM “AMOR” DE NARRATIVA

NEUZA MACHADO

Nesta postag
em, é minha intenção reverenciar a escritora Clarice Lispector, uma das mais sublimes criadoras ficcionais da literatura brasileira do século XX.





AMOR

Clarice Lispector


Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranquila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranquila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranquilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranquila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.


Lispector, Clarice. Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998: 19.

domingo, 27 de março de 2011

ROBERTO DRUMMOND: POR FALAR NA CAÇA ÀS MULHERES

ROBERTO DRUMMOND: POR FALAR NA CAÇA ÀS MULHERES

NEUZA MACHADO

Neste Brasil do Século XXI, mesmo com os brasileiros elegendo uma mulher incomparável para o cargo de Presidenta do Brasil, as mulheres ainda são alvos da violência masculina, pois ainda existem homens que tentam, em vão, exigir direitos de possessão sobre seus corpos e mentes.

Um percentual pequeno, porém significativo, da população masculina não se adequou às mudanças culturais proporcionadas a partir da Revolução Feminina na década de 1960. Por isso, infelizmente, aqui e agora, as brasileiras são surpreendidas por notícias e cenas que, já no tempo da Amélia, não eram consideradas como justas, que sequer podem merecer algum tipo de justificativa.

De um modo geral, o arquétipo Femininainda está ligado a Suavidade, Beleza e Amor Incondicional, sendo as duas primeiras características relacionadas à forma física (do corpo feminino) e ao seu conteúdo (alma feminina); e a terceira característica está relacionada à sobrevivência da espécie humana. São essas três características que até hoje obcecam os Homens, quando o assunto é dominar as mulheres. Nesta semana, em um programa de televisão, o apresentador mostrou aos telespectadores uma cena terrível: um jovem de pouco mais de vinte anos espancando violentamente uma moça na cabine do elevador do edifício onde ela trabalhava. As câmeras filmadoras do elevador registraram todos os momentos da agressão. A moça só não morreu porque os colegas de trabalho a salvaram. Pensem comigo: se não fossem as câmeras de filmagem do elevador, a brutal agressão não seria documentada e a dúvida quanto ao agressor ficaria no ar. Se não houver documentação explícita (como as filmagens), depois de certas brutalidades, os agressores estampam suas caras “inocentes” e, não raro, até as mulheres ficam com pena do “coitadinho” que foi para a cadeia. O fa que, sem as provas que incriminem o homem, a reação mais imediata é imaginar que a mulher fez ou se portou de forma a receber a agressão, ou seja, deixaria de ser a vítima para ser consideradAqui no Brasil, tais atitudes masculinas vêm de longa data. Os anos setenta, por exemplo, registraram uma série de massacres contra as mulheres por seus cônjuges ou namorados. Lembro-me de que, naqueles anos terríveis (havia uma desconfortável Ditadura a nos oprimir), duas jovens senhoras da alta sociedade mineira foram brutalmente assassinadas, uma por seu companheiro do momento e a outra por seu rico marido. Está evidente que os tais casos de violência contra as duas mulheres vieram a público porque ambas eram conhecidas nos meios da alta sociedade brasileira. As violências domésticas contra as mulheres pobres não eram publicadas nos jornais da época. Mas, alguns incomodados escritores do século XX, autores de exemplares narrativas ficcionais, se propuseram a revelar, nas entrelinhas de seus textos, os graves problemas que afetavam alguns patamares da sociedade brasileira de então. Penso que atingido emocionalmente por aqueles brutais acontecimentos (principalmente, em relação às mulheres mineiras já mencionadas, conhecidas em todo o país por intermédio do famoso colunista social daquela época), o escritor Roberto Drummond, enquanto testemunha histórica dos ditos acontecimentos, se contemplou inspirado para escrever o incomodante conto “Por falar na caça às mulheres.

Apreciemos o conto de Roberto Drummond:


POR FALAR NA CAÇA ÀS MULHERES

Roberto Drummond


(O que foi escrito nos muros com grafite, spray e sangue)

Juliana: Sérgio te ama!
(13/12/70)

Juliana: Você é a vida de Sérgio!
(17/12/70)

Feliz Natal, Juliana! Votos de Sérgio!
(24/12/70)

Devo mendigar um olhar, Juliana?
(26/12/70)

Ah, Juliana!
(29/12/70)

Feliz 1971, Juliana!
De todo coração, Sérgio.
(30/12/70)

Para que tanto orgulho, Juliana, se você é pó e pó se tornará?
(7/1/71)

Pelo menos um olhar, Juliana!
(9/1/71)

Juliana: não vá para Cabo Frio!
(11/1/71)

Cabo Frio dá câncer!
(12/1/71, na parte da manhã)

Está dando meningite em Cabo Frio!
(12/1/71, na parte da tarde)

Não vá, Juliana!
(13/1/71)

Volte de Cabo Frio, Juliana!
(15/1/71)

Sem Juliana, Belo Horizonte é um cemitério!
(17/1/71)

Brasil, capital Juliana!
(19/1/71)

Ju: quinze dias em Cabo Frio é demais!
(30/1/71)

Seja bem-vinda a Belo Horizonte, Juliana!
(25/2/71)

Pelo menos responda ao meu bom-dia, Juliana!
(26/2/71)

Juliana: você voltou mais linda de Cabo Frio!
(28/2/71)

Um sorriso, pelo menos, Juliana!
(5/3/71)

Ju: você é o ar que Sérgio respira!
(17/3/71)

Ju: sem você, Sérgio prefere a morte!
(21/3/71, escrito a sangue)

Pense no que está fazendo, Juliana!
(25/3/71, outra vez a sangue)

Ju tem o prazo de dez dias para namorar Sérgio!
(1/4/71)

Se, em dez dias, Ju não namorar Sérgio, ele dá um tiro no ouvido!
(3/4/71)

Faltam nove dias para Sérgio dar um tiro no ouvido!
(15/4/71)

Faltam oito dias para Sérgio dar um tiro no ouvido!
(16/4/71)

Faltam sete dias para Sérgio dar um tiro no ouvido!
(17/4/71)

Faltam seis dias para Sérgio dar um tiro no ouvido!
(18/4/71)

Faltam cinco dias para Sérgio dar um tiro no ouvido!
(19/4/71)

Faltam cinco dias para Sérgio dar um tiro no ouvido!
(20/4/71, pela manhã)

Juliana: você não tem coração?
(20/4/71, de tarde, escrito a sangue)

Faltam três dias para Sérgio dar um tiro no ouvido!
(21/4/71, de manhã)

Sérgio já comprou o revólver!
(21/4/71, de tarde)

Faltam três dias para Sérgio dar um tiro no ouvido!
(22/4/71)

Falta um dia para Sérgio dar um tiro no ouvido!
(23/4/71, pela manhã)

Depois não diga que eu não avisei, Juliana!
(23/4/71, pela tarde)

É hoje, Juliana!
(24/4/71)

Obrigado, Ju, por salvar a vida de Sérgio!
(24/4/71)

Sérgio e Ju estão in love!
(26/4/71)

Sérgio e Ju se amam very much!
(27/4/71)

Sérgio e Ju juram eterno amor!
(9/5/71)

Ju é a alma gêmea de Serjão!
(11/5/71)

Serjão fará Ju feliz por toda a vida!
(15/5/71)


(De uma coluna social, no ano de 1973)

Praza aos céus que este colunista possa ver, ainda nesta bendita e festiva década de 70, que assinala o “Milagre Brasileiro”, uma outra cerimônia tão tocante e tão inesquecível. Saibam todos que a Basílica de Nossa Senhora de Lourdes, régia e lindamente decorada com flores amarelas do campo, foi pequena para caber a verdadeira multidão que se espremeu e se acotovelou em todos os recantos da nave, para assistir ao Casamento do Ano, que uniu pelos sagrados laços do matrimônio dois troncos muito queridos da Tradicional Família Mineira. Refiro-me, vocês já devem saber, ao enlace de Juliana Montenegro, a bela Ju, do clã dos Montenegro, pioneiros da industrialização de Minas, e do jovem empresário e desportista Sérgio Avelar, o Serjão, do clã dos Avelar, pioneiros da fase heróica dos bancos mineiros.

Em meio a empurrões, corres-corres e até mesmo a alguns desmaios, a bela Ju (que, diga-se de passagem, é um lançamento desta coluna, eleita que foi, com todos os merecimentos, Glamour Girl na promoção deste colunista) chegou à igreja com o atraso de quarenta e sete minutos, um recorde, mesmo em se tratando de noivas retardatárias. Aliás, enquanto a bela Ju não chegava, o jovem noivo, Serjão (que é como ele é conhecido nas rodas desportivas), já se postava no altar e exibia, muito orgulhoso, um telegrama de parabéns enviado pelo presidente Médici e dona Scila. E Serjão recordava para os amigos, entre risos (mas sem deixar de olhar para a porta de entrada da nave), que conquistou o coração da bela Ju, logo depois que ela foi eleita Glamour Girl, e quando, ele, Serjão, era membro do Clube dos Gaviões, utilizando-se de um expediente sui generis: escrevia mensagens dirigidas a Ju em todos os muros das vizinhanças do palacete dos Montenegros (que, por sinal, ocupa todo um quarteirão).

Quando, enfim, dissipados os temores e os diz-que-diz sobre o atraso da Noiva do Ano, eis que a bela Ju chegou na limusine negra (que seu próprio pai, o banqueiro-industrial Juracy Montenegro, fez questão de dirigir), e no momento em que ela desceu da limusine, houve um “oh!” de exclamação geral entre a multidão postada diante da Basílica de Lourdes e a multidão não se conteve: aplaudiu. E com toda razão, pois Juliana Campos Montenegro era a própria imagem da beleza e, visivelmente emocionada, parecia prestes a chorar,o que mais realçava a beleza de seu rosto (que o colunista Ibraim Sued elegeu como o mais belo de todo o Brasil).

A muito custo, cercada por agentes de segurança em boa hora contratados, a bela Juliana Montenegro desvencilhou-se da multidão e adentrou à nave da Basílica de Lourdes, pelo braço do emocionado pai, o banqueiro Juracy Montenegro (impecável na sua elegância britânica). Nesse exato momento, o Madrigal Renascentista regido pelo maestro Isaac Karabtschewsky (que veio do Rio especialmente) começou a cantar “Va Pensiero”, de Verdi, tendo como solista a sublime Maria Lúcia Godoy. Então, a Basílica de Nossa Senhora de Lourdes, como que flutuou e era tal a beleza do quadro que os presentes (incluindo vários banqueiros amigos do casal Montenegro) não puderam conter as lágrimas. Não era para menos. Afinal, Juliana Montenegro estava linda de morrer, com um penteado simplesmente maravilhoso assinado pelo cabeleireiro Lauro Ribeiro (que cuida de sua linda cabecinha desde que Ju tinha doze anos) e uma coiffure da internacional Many Catão. E,ademais, quando o Madrigal Renascentista pôs-se a cantar “Va Pensiero” e a voz maviosa de Maria Lúcia Godoy pairou na nave, mais parecia tratar-se (talvez pela própria música “Va Pensiero”, escolhida pela noiva) de uma cerimônia ligada aos destinos da pátria...


(O que foi escrito nos mesmos muros, com grafite, spray, sangue e piche, de 1973 em diante, enquanto Ju e Sérgio pareciam felizes.)

― Abaixo a ditadura!

― Fora Médici!

― Viva a Guerrilha do Araguaia!

― Ouçam a Rádio Tirana!

― Médici assassino!

― Abaixo a tortura!

― O que foi feito do nosso hipódromo?

― Prestigie a Calourada de Medicina!

― Queremos Telê no Atlético!

― Abaixo Iustrich no Atlético!

― Pílulas de Lussen ainda resolvem!

― Anule seu voto!

― Vote em branco contra farsa eleitoral!

― Liquidação é nas Casas Pernambucanas!

― Queremos nosso hipódromo já!

― Viva a maconha!

― LSD!

― Prestigie o Rei do Pão de Queijo!

― Julieta está dando!

― Maurinho é bicha!

― MDB!

― Rock concerto domingo! Campo do Cruzeiro!

― I love The Who!

― Voltem Beatles!

― Vamos viajar, gente!

― Viva a cocaína!

― Viva Chico Buarque!

― Chega de generais!

― Abaixo a ditadura!

― Fora Geisel!

― Poder para os civis!

― AI-5 é nazismo!

―Abaixo o AI-5!

― Abaixo a tortura!

― Herzog: teu sacrifício não será em vão!

― Viva Manoel Fiel!

― MDB: você sabe por quê?

― Vote contra a ditadura! Vote MDB!

― Tome Hepatovis!

― Anistia!

― Queremos anistia já!

― Anistia ampla, geral e irrestrita!

― Abaixo o AI-5!

― Abaixo as multinacionais!

― Chega de generais!

― Queremos eleições diretas!

― Fora Figueiredo!

― Viva o cheiro do povo!

― O ABC é o Brasil!

― Todo apoio à greve do ABC!

― Viva Lula!

― Greve geral amanhã!

― Anistia ampla, geral e irrestrita!

― E os mortos? Quem vai anistiar os mortos?

― Sejam bem-vindos exilados!

― Viva a UNE!

― Bem-vindo Brizola!

― Viva o Cavaleiro da Esperança!

― Arraes fala amanhã: Faculdade de Direito!

― Viva o ABC!

― João Amazonas fala amanhã: Sindicato dos Gráficos!

― Fora militares!

― Abaixo a repressão!

― Viva a greve das professoras!

― Viva a greve do ABC!

― Segunda-feira: greve da Fiat!

― Amanhã: greve da Belgo!

― Viva os operários da Volks!

― Todo apoio à greve dos enfermeiros!

― Segunda-feira: greve geral da construção civil!

-- Viva os peões em greve!

― Cadeia para os assassinos de operários!

― Viva a greve dos lixeiros e garis!

― Terça-feira: greve dos médicos residentes!

― Legalidade para o PCB!

― Todo poder à classe operária!

― Simone canta amanhã no DCE!

― Cadeia para o terror!

― Cadeia para os assassinos do terror!

― Quem jogou a bomba no Riocentro? Até as crianças sabem!

― Cadeia para os terroristas do Riocentro!

― Liberdade!

― Chega de pacote!

― Viva o Gay Power!

― Abaixo a inflação!

― Fora Delfim!

― Queremos liberdade!

― Chega de militares!

― Viva os civis!

― Liberdade!


(Da página de polícia dos jornais num dia qualquer da década de oitenta)

Com três tiros de revólver disparados à queima-roupa, o empresário e desportista Sérgio Avelar matou sua bela mulher Juliana Campos Montenegro Avelar, mais conhecida como Ju, integrante da lista de “Dez Mais” e considerada a dona do rosto mais bonito do Brasil pelo colunista Ibraim Sued. O crime, que envolve duas das mais ricas e conceituadas famílias mineiras, ocorreu na mansão do casal no Alto das Mangabeiras, a apenas alguns quarteirões do palácio residencial do governador Francelino Pereira. O empresário Sérgio Avelar, o Serjão da seleção mineira de vôlei na fase de maior glória, desapareceu após o crime. Toda acena foi presenciada pela menina Andréa, de quatro anos, única filha do casal, que gritava:

― Papai, não mata minha mãe!

Segundo a doméstica Marli de Jesus, que trabalha com o casal desde o casamento, o crime foi precedido de violenta discussão, tendo, a certa altura, a ex-Glamour Girl Juliana Campos Montenegro Avelar gritado:

― Atire logo! (Ainda nos jornais, nos dias seguintes)

Enquanto o empresário Sérgio Avelar continua em destino ignorado (suspeita-se que esteja numa clínica de repouso ou num sítio) e seu advogado Lins Bernardes informa que o assassino está preso de forte depressão nervosa, mas se apresentará às autoridades tão logo o médico que o assiste ache conveniente, a doméstica Marli de Jesus depôs ontem sobre o crime de que foi vítima sua patroa Juliana Montenegro, a bela Ju, e disse que, ultimamente, o casal discutia por um nada.

― Eles brigavam o dia inteiro e dona Juliana, coitada, não tinha paz nem para assistir às telenovelas, o que ela tanto gostava...

Disse ainda Marli de Jesus que o empresário Sérgio Avelar nutria fortes ciúmes da bela Juliana que, segundo Marli, era uma pessoa muito alegre, comunicativa com todos, razão porque era adorada por ela, Marli, mais as duas domésticas Neide e Conceição e pelo caseiro Sebastião Francisco do Nascimento, o Chico Caseiro. Revelou também Marli de Jesus que as discussões do casal se acirraram depois que a bela Juliana resolveu trabalhar, abrindo a Ju Butique, no bairro da Savassi...


(Quatro dias depois, nos jornais)


Em novo depoimento sobre o rumoroso crime que teve como vítima a bela Ju, a doméstica Marli de Jesus revelou na Delegacia de Homicídios, na tarde de ontem, que era freqüente o empresário Sérgio Avelar, bêbado e com uma pinça na mão, interrogar e torturar a menina Andréa, única filha do casal, para saber se a esposa, a bela Ju, tinha conversado com outro homem.

― Muitas vezes ― contou Marli de Jesus ― o empresário Sérgio torturava tanto Andréa com a pinça, levando a pobrezinha a inventar uma história que comprometia sua mãe... (Certo dia nos jornais)

Barbado, óculos escuros, jeans azul, mais parecia um galã de telenovela. Foi assim que o empresário Sérgio Avelar, o Serjão da seleção brasileira de vôlei de 71, que assassinou a esposa Juliana Campos Montenegro Avelar, a bela Ju, com três tiros à queima-roupa, compareceu na tarde de ontem para depor na Delegacia de Homicídios. Ele foi recebido na porta da delegacia aos gritos de “lindo! lindo!” por moças que portavam cartazes com os dizeres “Viva Serjão!”, enquanto as feministas carregavam cartazes onde estava escrito “Quem ama não mata!” e ficavam em silêncio.

Pelo menos uma vez o milionário Sérgio Avelar acenou para as fãs, tendo dado três autógrafos, mas, tão logo o delegado Raul Resende, o doutor Kojac, lhe perguntou se confessava a autoria da morte de sua esposa Juliana Campos Montenegro Avelar, o empresário chorou copiosa e convulsivamente, repetindo seguidamente:

― Deus sabe por que matei, Deus sabe...

Ao começar seu depoimento, os olhos vermelhos de chorar, o empresário Sérgio Avelar declarou que, nos primeiros anos de casado, viveu num verdadeiro paraíso com a esposa Juliana. Viviam, segundo sua expressão, uma eterna lua-de-mel, realizando, de seis em seis meses, viagens ao exterior, tendo percorrido não apenas os Estados Unidos, como toda a Europa e até mesmo a Rússia, pois estiveram em Moscou e Leningrado. Como prêmio a tanta felicidade, nasceu uma filha, que recebeu o nome de Andréa. Mas quando Andréa completou três anos (isso há um ano, exatamente), o empresário começou a notar uma súbita mudança no comportamento da bela Juliana, que, segundo ele, se ligou a artistas, escritores e homossexuais, tendo-se associado a conhecido travesti da cidade, contra sua vontade, para a abertura de uma butique de roupas, a Ju Butique.

Inconformado, o empresário Sérgio Avelar tentou levar a bela Ju a mudar de idéia, argumentando que ela devia viver para o lar e para a filha, que precisava dela, no que não foi atendido. Disse ainda o empresário que a bela Ju chamou-o de machista, usando uma expressão naturalmente aprendida com as novas amizades, quando ele disse que ela não precisava trabalhar e lhe ofereceu uma Mercedes verde, zerinho, em troca do fechamento da butique, proposta que a bela Ju recusou com veemência.

― Nesse dia ― contou o empresário Sérgio Avelar em seu depoimento ― ela não me deixou dormir na mesma cama, como fazíamos desde casados...

Outro ponto de discórdia entre o casal era o fato da bela Ju gostar muito de telenovelas, que o empresário Sérgio Avelar considera nocivas à moral, subversivas e desagregadoras de lares. Lembrou que, durante a novela “Água Viva”, de Gilberto Braga, a bela Ju não conseguia disfarçar o entusiasmo quando aparecia no vídeo a personagem Nélson, vivido pelo ator Reginaldo Farias. A princípio, logo nos primeiros capítulos de “Água Viva”, o empresário Sérgio Avelar julgou que seria uma atração passageira. Mas, com o evoluir da novela, a bela Ju se mostrava mais e mais empolgada com Nélson, ou seja, com o ator Reginaldo Farias, o que gerou acaloradas discussões entre o casal. Conforme chegou a confessar em seu depoimento, o empresário Sérgio Avelar (usando expressões textuais suas) “respirou aliviado quando terminou a novela ‘Água Viva’ ”. E mais aliviado ficou porque, na novela seguinte, “Coração Alado”, de Janete Clair, que a TV Globo apresentou, o ator Reginaldo Farias, o Nélson de “Água Viva”, não desempenhou nenhum papel.

Foi o bastante, por sinal, para a bela Ju pouco se interessar por “Coração Alado”, chegando a hostilizar o ator principal, Tarcísio Meira, chamando-o de canastrão, o que provocava sucessivas discussões, pois o empresário Sérgio Avelar defendia Tarcísio Meira, classificando-o de excelente ator, ao mesmo tempo em que dizia:

― Canastrão é o tal de Reginaldo Farias!

Mas, logo, as discussões cessaram, uma vez que a bela Ju se desinteressou por completo pela novela “Coração Alado”. A paz do casal, no entanto, durou pouco, pois acabada “Coração Alado”, eis que a Rede Globo lançou nova novela das oito, “Baila Comigo”, de Manoel Carlos, com o ator Reginaldo Farias vivendo o papel do médico homeopata Saulo. Foi o bastante para que a bela Ju voltasse a se interessar por novelas, sendo que deixava a butique mais cedo e, após mergulhos na piscina da mansão do casal, os cabelos sexymente molhados, e vestida de maneira provocante (algumas vezes de biquíni) postava-se diante da televisão e não podia esconder o interesse quando a personagem vivida por Reginaldo Farias surgia em cena.

Por mais de uma vez, conforme revelou em seu depoimento, o empresário Sérgio Avelar chegou a conversar com a bela Ju, admoestando-a (a expressão é dele) pelas atitudes inconvenientes e provocantes com o ator Reginaldo Farias, chegando até a proibi-la, sem sucesso, de assistir “Baila Comigo”. Nessas ocasiões a bela Ju dizia:

― Você ficou louco!

Disse o empresário, já no fim de seu depoimento, que na noite que antecedeu à madrugada do crime, teve sério desentendimento com a bela Ju, por causa do ator Reginaldo Farias, já que a ex-Glamour Girl, após nadar na piscina da mansão e com um copo de uísque na mão, foi assistir à novela “Baila Comigo”, numa atitude provocante, inteiramente nua, apenas enrolada numa saída de praia. Nessa ocasião, não resistindo, o empresário Sérgio Avelar, sabendo-se traído em pensamento pela esposa, deu um tiro de revólver no aparelho de televisão, quando aparecia o ator Reginaldo Farias. Já de madrugada, com os nervos muito abalados, o empresário Sérgio Avelar ainda tentou uma reconciliação com a bela Ju, que o afastou, dizendo:

― Você atirou no homem que eu amo!

Diante disso, o empresário Sérgio Avelar não se conteve e em nome de sua honra ferida disparou três tiros à queima-roupa que atingiram mortalmente a bela Ju... (O que nem os muros nem os jornais contaram: o delírio da bela Juliana Montenegro na hora da morte)


No primeiro tiro, sentiu saudade de San Francisco, na Califórnia, mas nunca tinha estado lá, e caiu de joelhos com o primeiro tiro e viu uma imensa rua de uma zona boêmia só com mulheres índias, que estavam bêbadas e vestidas e cantavam um rock.
Thank you, very well
thank you, senhores do Brasil.
Nós somos as mulheres índias do Brasil
peritas em strip-tease
recebemos em dólar
em libra
em franco
e em cruzeiro.
Thank you, very well
ladies and gentlemen
thank you
for the sífilis
thank you
for the gonorréia crônica
thank you (nunca nos esqueceremos)
pela tuberculose
e a lepra
e o sarampo
oh, yeah, thank you, very well
senhores proprietários do Brasil.


No segundo tiro, quis comer outra vez uma ceia que nunca comeu na Cidade do México, e quis se levantar, achando que tudo era um sonho, e outra vez caiu de joelhos, e viu milhares de participantes de um congresso nacional de moças de trottoir do Brasil, era ao longo do calçadão da Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, e as participantes tinham de nove a vinte e três anos e havia uma alegria fabricada às custas de bebida e maconha e as moças do trottoir estavam vestidas de virgens, todas de branco, e cantavam um rock:
Thank you, very well
thank you, donos do Brasil.
Nós somos as moças do trottoir
alegramos velhos decrépitos
por qualquer vintém
fazemos os gringos
subirem à parede
por uma migalha de dólar
fingimos estar gozando
mas na hora
no escuro dos quartos
enxergamos nossos pais
que nos chamam de putas
e têm medo do comunismo
ateu e anticristão
e se ajoelham
nos pés dos donos do Brasil.
Oh, thank you, very well
qualquer lixo
da sociedade de consumo nos serve
somos as moças do trottoir
famintas de um pedaço de pão
e carne
e
chegamos em casa
cheirando a gringos e
a velhos decrépitos.
Oh, thank you, very well
thank you
for the prostituição
que é de todo o corpo
e até do coração.


No terceiro tiro, dançou um tango que nunca dançou em Buenos Aires e quis andar de bicicleta, porque achava que era imortal, e flutuou como uma asa delta ou uma garça sobre o estádio do Maracanã lotado de lebres e panteras e coelhinhas e egüinhas e poldrinhas e era época da temporada de caça às mulheres do Brasil e elas cantavam:
Thank you, very well
Thank you, donos do Brasil.
Hoje não somos
as suas coelhinhas
venham nos comer
se vocês forem homens
não somos as lebres
venham nos caçar
se vocês forem homens
não somos as panteras do Brasil
venham nos amar
se vocês são homens
não somos nem as poldrinhas
nem as eguinhas
nem as Amélias do Brasil
hoje somos
uma rebelião
que começa entre as pernas
e acaba no coração...


No quarto tiro, bom, não houve o quarto tiro: ela já estava morta, mas julgava-se viva e ouvia a voz de Amélia, a do samba, falando:
-- Pior, Ju, não é a morte no gatilho, pior é quando nos matam e nos deixam com a sensação de que estamos vivas e que somos vacas parideiras, pior, Ju, é essa morte com tiros silenciosos e que transformam nosso coração num pássaro empalhado que já não canta..


(DRUMMOND, Roberto. “Por falar na caça às mulheres”. In: Quando fui morto em Cuba. 8. ed. São Paulo: Atual, 1994: 68-83)

terça-feira, 22 de março de 2011

PADRE ANTÔNIO VIEIRA E O QUINTO IMPÉRIO JUDAICO-CRISTÃO

PADRE ANTÔNIO VIEIRA E O QUINTO IMPÉRIO JUDAICO-CRISTÃO

NEUZA MACHADO

Eis um momento ideal para reconsiderarmos as previsões de Padre Antônio Vieira sobre o Quinto Império Judaico-Cristão (hoje, acrescentaríamos todas as outras religiões).

Segundo as premonições de Padre Antônio Vieira, Portugal seria o glorioso reino que assentaria os alicerces desse dito Quinto Império. E Vieira, naquele momento de iluminação místico-religiosa, estava residindo no Brasil-Colônia e o Brasil-Colônia pertencia à restaurada Monarquia Portuguesa de Dom João IV (um nobre português sem vínculos familiares com as anteriores dinastias, mas que foi escolhido pelo povo português para fundar a terceira dinastia de reis portugueses).

Será que estarei divagando, já com as faculdades mentais em decomposição, se penso que estamos já próximos desse dito Maravilhoso Quinto Império Judaico-Cristão-e-Outros (tão ansiado por Padre Antônio Vieira no século XVII), Império da Saudável Liberdade Religiosa, Império da União Sócio-Religiosa Entre os Diversos Povos, Império do Amor ao Próximo e ao Distante, por intermédio de nossa prodigiosa Língua Brasileira/Portuguesa?

Gostaria muitíssimo de transmitir aos queridos Amigos Portugueses infinitos agradecimentos, por terem legado ao Brasil (graças à índole indômita de seus antepassados) este admirável idioma.

Ainda, em agradecimento, republico aqui a minha verificação sobre a questão do Quinto Império Judaico-Cristão pré-anunciada por Padre Antônio Vieira ao longo do século XVII.

O Unificador (o Ungido para tal importante demanda) seria indubitavelmente um nativo de Portugal (um autêntico oriundo da Flor do Lácio Cultíssima e Bela) ou um Popular Ex-Governante de um outro país de língua portuguesa, um herdeiro da Flor do Lácio Inculta e Bela?

(Lembrem-se, meus caríssimos leitores, do fato de que os aventureiros nautas portugueses, que no passado enfrentaram as intempéries marítimas para a conquista de novas terras, eram quase todos, com raras exceções, incultos. Exatamente como os soldados romanos desbravadores...).

No início dos anos noventa escrevi uma apreciação histórico-crítica sobre o assunto e ora a reapresento [A ESTÉTICA DO PARADOXO: SOBRE ALGUNS SERMÕES (HISTÓRICOS) DE PADRE ANTÔNIO VIEIRA]. Naquela oportunidade, meditei sobre o já mencionado tema motivada por uma disciplina de literatura portuguesa/brasileira, ministrada pelo Professor Leodegário A. de Azevedo Filho no Curso de Pós-Graduação em Letras-Ciência da Literatura/Doutorado da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Penso que, em virtude dos atuais acontecimentos que envolvem belicamente o Oriente Médio, a anterior e incomum premonição de Padre Antônio Vieira poderia, muito bem, ser reavaliada.

Se for do interesse de meu leitor, peço-lhe que leia a seguir a minha apreciação sobre a historicamente reconhecida premonição de Padre Antônio Vieira.


A ESTÉTICA DO PARADOXO

1 - SOBRE ALGUNS SERMÕES (HISTÓRICOS) DE PADRE ANTÔNIO VIEIRA

NEUZA MACHADO


Penso na questão teórica do Maneirismo e do Barroco como algo que requer muita meditação e que dará margem para muitas futuras discussões, uma vez que o assunto vem motivando, ao longo dos anos, desencontradas teses, hipóteses teórico-históricas ainda não concretamente definidas.

Consciente destas desencontradas opiniões, ou especulações sobre esta questão ainda polêmica, desejo, inicialmente, traçar as metas de meu pensamento teórico-crítico sobre a oratória de Padre Antônio Vieira. Assim, a questão que se desenvolve, até os dias de hoje, sobre essas duas correntes estéticas (o Maneirismo e o Barroco), não apresentará, nas primeiras páginas, um caráter inovador, apenas refletirá uma síntese do que busquei e registrei ao longo de minhas leituras sobre a História da Literatura Portuguesa (Cf.: SARAIVA & LÓPES, História da Literatura Portuguesa). Reservarei um ponto de vista um pouco mais pessoal (mas, com certeza, não aleatório) para a segunda parte desta proposição, realçando as crenças de Vieira sobre o Encoberto e sobre o Mito do Quinto Império Judaico-Cristão, porque, graças ao reconhecimento do texto, fundamentado na hermenêutica atual, acrescido de conhecimentos sociológicos, históricos e religiosos, terei como interagir com um assunto controverso, sob a proteção do raciocínio interpretativo.

A hermenêutica se adapta aos meus propósitos (para explicar, exclusivamente, a obra de Padre Antônio Vieira), por ter sua origem nos primórdios da história religiosa do homem ocidental. Até há pouco tempo, falou-se muito desta linha de pesquisa nos meios acadêmicos. Atualmente, há a imposição da interdisciplinaridade (a interligação de todas as tendências críticas), ressaltando-se mais a Estética da Recepção (diálogo com o texto). A chamada hermenêutica profana (interpretação de textos literários), mesmo não sendo, no momento, o estudo soberano nos cursos de pós-graduação em Ciência da Literatura, não há, nos cursos de graduação em Letras, um conhecimento correto sobre seus questionamentos de origem, sua ligação com os textos sagrados, as divergências que a marcaram no decorrer de sua história, e, sobretudo, não há um conhecimento sobre a sua posterior incursão nos domínios da Filosofia e da Literatura.

Assim, retomando a história da Hermenêutica de base religiosa, o que a preocupou desde o seu advento foi o problema da correta interpretação dos Textos Sagrados. É bom lembrar que, no que se refere às interpretações de Vieira, inseridas em seus famosos sermões, uma retomada teórica, a partir do ponto de vista da Hermenêutica, torna-se indispensável. Desejo realçar que os meus conhecimentos sobre o assunto se baseiam em dados oferecidos por Emerich Coreth, no livro Questões fundamentais de Hermenêutica. A proposta inicial de seus estudos [estudos de Emerich Coreth] foi reconhecer a história do problema teológico e a sua ligação com as questões atuais da Hermenêutica da Literatura, em outras palavras, a questão do próprio conhecimento ao se contemplar as obras literárias. Os estudos hermenêuticos, aqui realçados sob a orientação de Coreth, irão proporcionar-me uma abertura que propiciará a defesa de meu objetivo central, o qual opta pelo desenvolvimento de uma reflexão pessoal sobre alguns sermões de Vieira. Esta reflexão, para se livrar dos afamados achismos críticos, se colocará sob a proteção de meus próprios conhecimentos de Ciência da Literatura, Literatura propriamente dita, História e Religião.

A Hermenêutica, como é conhecida hoje, é uma ciência que questiona a correta interpretação dos textos literários. No início da história religiosa da Igreja Ocidental, a questão da interpretação estava restrita apenas aos escribas, intérpretes das mensagens contidas no Antigo Testamento. Emerich Coreth, ao se referir aos escribas, situa-os como os primeiros exegetas que procuraram questionar a importância de uma correta interpretação dos Textos Sagrados. Observe-se que esses textos anunciavam o nascimento do Salvador, e os mesmos eram interpretados por sacerdotes rudes, portanto, interpretações sujeitas a falhas e ambigüidades. Com a instituição do Novo Testamento, as ambigüidades se desfazem, pois quem as esclarece não é outro senão o próprio Filho de Deus, o Salvador esperado. Segundo Coreth, o Novo Testamento se coloca desde as primeiras páginas como o único intérprete autêntico das Mensagens Sagradas, e isto se deve ao aval do próprio Jesus Cristo, ao procurar elucidar, para as multidões que o acompanhavam, todas as ambigüidades anteriormente questionadas, algumas que foram incorretamente interpretadas, de acordo com o que nos passa o Novo Testamento.

Fundamentando-me nas informações de Coreth, foi-me possível compreender porque Vieira, ao desenvolver os temas de seus sermões, sempre procurou interpretar versículos e salmos do Antigo Testamento referindo-se pouco aos versículos do Novo Testamento. Os textos do Antigo Testamento proporcionavam ao sermonista uma maior capacidade para desenvolver questões paradoxais, sem que, com isto, o sermão se resvalasse para o campo das impossibilidades. Resguardado pela própria ambigüidade dos textos do Antigo Testamento, Vieira pode desenvolver seus argumentos religiosos e sociais, paradoxais, misturando análise etimológica com análise gramatical, desenvolvendo pensamentos analógicos e argumentativos, além de se utilizar, como veremos nos sermões por mim revisitados, de arraigadas superstições, que o acompanharam até a morte. O sermonista, para fundamentar a sua proposta de evangelização, buscava nos textos do Antigo Testamento, principalmente, a matéria que o ajudaria a compor um discurso que estava mais preocupado com os problemas sociais da Corte portuguesa e da Colônia, do que propriamente com os ensinamentos divinos. Desenvolvendo duas propostas de argumentação [uma religiosa e outra profana], misturando conceitos, transmitindo idéias que chegavam ao plano da imaginação fantasiosa, Vieira deu vida literária a sermões que, distantes da técnica ensaística da oratória, enquanto Gênero, assumiram com grandeza a expressão da Literatura-Arte.

Paralelamente aos postulados hermenêuticos, entretanto submetida a postulados sociológicos, procurarei ainda identificar o orador sacro Padre Antônio Vieira como um ser social, inserido numa determinada fase da história social de Portugal e do Mundo, identificado com os valores sócio-religiosos de seu momento, mas atuando também como intermediário entre o Histórico e o Divino. Pelo ponto de vista da Sociologia do Texto Literário, os sermões de Vieira impõem-me repensar a realidade histórica de Portugal até o final do século XVII. Repensando os problemas sociais de Portugal, daquela época, por meio dos textos de Vieira, foi-me possível refletir sobre as diretrizes religiosas que pautaram a vida do Homem do período barroco.

Por tais motivos, reunirei, aqui, vários pontos de vista teórico-críticos pela ótica da interdisciplinaridade: Hermenêutica, Sociologia, História e Religião. Entretanto, devo informar, também, o meu conhecimento de cada um deles, em separado. Todos esses direcionamentos críticos estarão aqui a serviço da decodificação de alguns sermões de Padre Antônio Vieira. Firmarei meus pensamentos, notadamente, no Sermão de exéquias do Rei D. João IV e em alguns outros sermões centralizados na família real. Esses sermões estariam evidentemente catalogados como Gênero Ensaístico – literatura técnica, ensaio, oratória – se não fosse o alto teor de ambigüidades detectado nos textos. Graças a essas ambigüidades, tais sermões jamais poderão ser classificados como paraliterários. Há neles, indiscutivelmente, a marca genial de um escritor da estética barroca – estética do paradoxo –, cujos textos já foram classificados como Literatura-Arte.


2 - A QUESTÃO TEÓRICA DO MANEIRISMO E DO BARROCO

No final do século XV, observou-se uma nova formação existencial para o homem europeu. Naquele momento, o homem procurava alargar seus horizontes, rompendo com os valores comunitários, já ultrapassados, da Idade Média. Era o início das grandes navegações que iriam marcar o século seguinte e mudar a História do Mundo. No decorrer do século XVI, os ideais comunitários, religiosos e hierárquicos do período medieval já começavam a ser questionados, e iniciou-se a caminhada solitária do homem em direção a um futuro incerto. Os antigos valores de uso – a troca de um objeto por outro, por exemplo – cederam lugar à mediação do dinheiro, à busca de novas invenções [que iriam permitir o progresso], ao desenvolvimento de conhecimentos técnicos, à patenteação de máquinas industriais [que afastariam, posteriormente, o homem do campo, levando-o em direção à cidade]. Era o momento do capitalismo mercantil, dos ricos empresários capitalistas de origem judaica; era aquele o momento dos valores de troca, valores degradados, valores mediatizados pelo dinheiro, que fariam dos componentes da classe menos favorecida socialmente míseros assalariados submetidos às imposições das leis de um novo mundo em aceleradas transformações.

Quanto à Literatura, o século XVI foi o momento da retomada da cultura greco-latina e o abandono das concepções religiosas que predominaram na Idade Média. A Literatura comprazia-se em destacar o lado humano da existência, buscando nos modelos antigos as diretrizes da criação literária. O século XVI foi o momento de Camões e de sua epopéia nacional, na qual, ao evocar as grandezas de Portugal, o Poeta instaurou a idéia de individualismo – povo privilegiado – que marcaria Portugal nos séculos seguintes.

O final do século XVII marcou o momento do Humanismo angustiado, gerando tensão entre duas forças que se opunham e, ao mesmo tempo, se atraiam, fazendo da estética literária, daquele período principalmente, uma estética que se submetia aos valores da vida material [herança renascentista] e, ao mesmo tempo, aos valores da religião, herdados das tradições monásticas da Idade Média [valores estes jamais rejeitados pelo povo português, mesmo antes, quando os valores culturais do mundo ocidental estavam ligados à antiga cultura pagã].

Nas décadas finais do século XVI, aconteceram os graves problemas que marcaram a História de Portugal: o desaparecimento de D. Sebastião (1578) e a submissão da Coroa Portuguesa aos reis espanhóis. Era o momento da Contra-Reforma tentando restaurar os estragos reformistas de Lutero, procurando um novo equilíbrio para o desequilíbrio religioso gerado pelo Cisma. Era o momento da desesperança e do desengano; do homem em face de uma confusão existencial: o amor aos prazeres mundanos e o medo do castigo de Deus. Era o momento do Maneirismo, estética que registraria a fugacidade da vida, a precariedade dos valores humanos, a idéia de inevitabilidade da morte, da tensão entre a entrega aos prazeres da vida (visão pagã) e a entrega aos prazeres da alma (visão religiosa). Era o momento da estética ligada a elementos tardo-góticos, antitética, refinada e aristocrática: estética da hesitação e da dúvida.

Mas, paralelamente à estética maneirista, surgiu um novo ideal estético: o Barroco. Não pretendo destacar um momento preciso para o início do Barroco, uma vez que, historicamente, as duas estéticas se confundem; apenas existe uma tendência em pensar que o Maneirismo tivesse surgido um pouco antes do Barroco. Ao contrário das aristocráticas dúvidas maneiristas, a estética barroca privilegiou a camada popular, comunicando-se facilmente, apesar da concentração de algumas características da estética maneirista [tais como a idéia de inevitabilidade da morte, entrega aos prazeres da vida material, em contraponto com a fugacidade da vida, e outras, e que, na verdade, não eram características exclusivamente estéticas, mas, características também de uma época conturbada, angustiada, submetida a uma dolorosa tensão entre os valores do mundo e os valores religiosos]. Assim, por este ângulo, o Barroco foi também uma estética de ruptura e tensão, ressaltando o aspecto fugaz da vida. A diferença marcante é que, ao contrário do Maneirismo, o Barroco impressionava [e ainda impressiona] todos os sentidos do ouvinte ou leitor, porque provocava um impacto auditivo, sedutor, impedindo-o que parasse para raciocinar, ou apontar as possíveis falhas, ou mesmo constatar os acertos.

O Barroco se desenvolveu em torno dos ideais místicos da Contra-Reforma, não obstante o maneirismo estar mais próximo dela historicamente. Segundo Miguel de Unamuno, o Barroco foi um movimento pendular entre o espírito e a carne, sendo que a literatura calcada nos ideais do espírito destacou-se mais, já que estava relacionada ao movimento jesuítico da expansão da fé. Enquanto o Maneirismo se posicionava como a estética que privilegiava a antítese, o Barroco colocou-se como a estética do paradoxo, do espetaculoso, do redundante. Foi principalmente a estética que propiciou o surgimento de uma das figuras mais notáveis, no âmbito da Literatura Portuguesa e Brasileira: Padre Antônio Vieira.

É sobre esse gênio da oratória barroca que falarei daqui para frente, acentuando que foi de uma peculiar importância penetrar nos meandros de extraordinária mente argumentadora e geométrica, acompanhar o movimento de perguntas e respostas, habilmente interligadas e desenvolvidas, obrigando-me a acompanhar a sua oratória com o sentimento de respeito e admiração [evidentemente além do meu ponto de vista teórico]. Vieira impôs-me [ficcionalmente, bem entendido] acreditar em suas crenças mais irracionais e, ao fim destas minhas reflexões, a vislumbrar meu próprio sentimento de perda, porque suas predições não se realizaram.


3 - A PALAVRA SAGRADA E SEU MISTÉRIO

No sermão das exéquias do Rei D. João IV, Vieira dá início ao seu discurso, utilizando-se de dois versículos, retirados do Salmo 89(88), considerados pelos exegetas um dos mais belos hinos ao Criador. O Salmo relembra a aliança entre Deus e o Rei Davi, aliança na qual Deus prometia permanente proteção aos descendentes do Rei.

Fiz uma aliança com meu eleito,
Eu jurei ao meu servo Davi:
Estabeleci a tua descendência para sempre,
De geração em geração construo um trono para ti. (Salmo 89(88): 4-5)

Nos versículos seguintes, o Poeta bíblico Etã, o ezraíta, desenvolve um hino de louvor ao Criador (vv. 6-19), introduzindo logo a seguir um oráculo messiânico (vv. 20-38), contrapondo-o à evocação dos sofrimentos e humilhações infringidos, pelo próprio Deus, aos descendentes do ungido. No final do Salmo, o Poeta Etã se dirige inquisidoramente ao Criador, intimando-O a cumprir o prometido ao Rei Davi, mas desenvolvendo um tom mais brando no final, concluindo com uma prece em louvor ao Deus de seu povo, aquele que prometera, mas não estava cumprindo a promessa.

Vieira re-elaborou a temática do Salmo, nesse Sermão de exéquias, construindo um raciocínio que reequilibrasse todas as anteriores afirmativas, malogradas, em que visualizava em D. João IV a encarnação do rei encoberto, tão esperado pelos portugueses desde o desaparecimento de D. Sebastião em terras africanas. Assim, Vieira se utilizou desse Salmo para reafirmar o que havia dito anteriormente, em outro sermão, quando da ascensão do Duque de Bragança ao trono de Portugal, no qual havia predito que D. João era o escolhido por Deus para restaurar o reino de Portugal. A reafirmação, ao longo do sermão, se fazia necessária porque, mesmo com o Rei já morto, Vieira ainda acreditava que Portugal seria o Quinto Império, visualizado por Bandarra. D. João, quando de sua ascensão ao trono, foi apontado, pelo mesmo Vieira, como o Rei Encoberto, previsto pelo sapateiro-profeta de Trancoso. Com a morte do Rei, e consciente de que Portugal ainda não havia se convertido no Quinto Império, Vieira procurou reafirmar a profecia, transferindo-a para D. Afonso VI. O orador, para revalidar suas anteriores afirmações, buscou no Salmo 89(88) os elementos necessários que reforçariam a sua argumentação. Vieira comparou D. João a Davi, aquele Rei bíblico que fora ungido com óleo santo, pelas mãos do profeta Samuel, a mando do Deus dos hebreus.

Encontrei meu servo Davi
E o ungi com meu óleo santo;
É a ele que minha mão estabeleceu,
E o meu braço ainda mais o fortificou. (Salmo 89(88), vv. 21-22)

Para que se entenda esta comparação, faz-se necessário recordar que D. João IV enfrentou inúmeros problemas no início de seu reinado. Existia, por exemplo, uma guerra com a Espanha, porque esta não se conformava evidentemente com a perda do reino português. Houve uma restauração, mas essa restauração não foi pacífica. Outro grande problema enfrentado pelo novo rei foi o econômico, já que o tesouro real encontrava-se abalado, por ter sido administrado, até então, pelos reis espanhóis, e também pelos gastos na guerra. Além desses dois graves problemas – a guerra com a Espanha e as dificuldades econômicas – havia a possibilidade de uma nova guerra com os holandeses, já que estes ambicionavam o domínio das terras do Brasil. Para culminar, existiam também as brigas internas, os desacordos políticos, e uma série de problemas menores ligados à administração do reino.

Vieira vivenciou todos esses importantes momentos da História de Portugal desde o reinado de Filipe IV de Espanha. Nasceu durante o domínio espanhol; ordenou-se sacerdote da Companhia de Jesus ainda no reinado de Felipe IV; lutou no púlpito contra as intenções dos holandeses; presenciou historicamente a recuperação do trono – a restauração –; sensibilizou-se com os problemas enfrentados pelo novo rei e viu-se historicamente como defensor da Coroa de Portugal. Para defendê-la, valeu-se de sua condição de orador sacro, não medindo esforços e palavras para realizar tão importante tarefa. Buscou na História de Portugal e nos Textos Sagrados a matéria que comporia a defesa; interpretou a Bíblia, transformando-a, para que se ajustasse às necessidades de sua argumentação defensiva. Inverteu magnificamente o comentário da palavra sagrada, fazendo do sermão – tema religioso – comentário dos assuntos ligados à movimentação social da Colônia e do Reino. Assim, estava escrito – e Vieira acreditava em predestinações – que ele seria aquele que daria crédito a todas as profecias sobre Portugal, desde os sonhos proféticos de Afonso Henriques até às predições do sapateiro Bandarra.

Supposto, pois, que o meu rei e senhor D. João se me não quer representar morto, senão vivo, préguem-lhe outros as exequias de defunto, que eu não quero nem posso. O que só farei hoje será uma narração panegyrica das reaes acções de sua vida. Toda está admiravelmente recopilada nas palavras que propuz, que são do Psalmo oitenta e oito. Vamol-as explicando, ou aplicando cada uma de per si, que todas tèm mysterio. [Vieira. Sermões. Porto: Livraria Chardron, 1909, vol. XV: 282]

Para Vieira, aceitar a morte do rei, seria destruir todas as profecias messiânicas, por ele revitalizadas. Portanto, era necessário, ao longo do sermão das exéquias de D. João IV, reafirmar tudo o que já predissera, anteriormente, quando da coroação daquele mesmo rei, naquele momento, morto. O seu discurso era de pesar – aquele que fora seu amigo pessoal estava morto –, mas Vieira acreditava na ressurreição em outros corpos vivos – metempsicose –, e o candidato para tal ressurreição era o infante D. Afonso, aquele que seria o novo rei de Portugal. Por essas razões, buscou nas promessas do Deus dos hebreus – Deus próximo, Deus quase tangível –, feitas ao Rei Davi, a matéria que reforçaria as suas crenças sobre o Rei Encoberto. Antes, ele já havia ressuscitado o Rei D. Sebastião, afirmando que D. João IV era o Encoberto tão esperado pelo povo português. Com essa afirmação, conquistara o Rei, a Rainha e toda a Corte, quando de sua viagem à Portugal. Agora, aquele que fora escolhido por Deus para transformar Portugal no Quinto Império Judaico/Cristão – ou o Império de Cristo – estava morto e, apesar do forte sentimento de perda, Vieira não desiste da profecia e a transfere para D. Afonso.

Ainda, segundo Vieira, D. João IV, assim como acontecera com o Rei Davi, era o procurado por Deus, para salvar Portugal das mãos dos estrangeiros. Inveni, achei, encontrei: Assim como Davi fora procurado por Samuel na casa de Jessé, o belemita, a mando de Deus, da mesma forma D. João foi procurado na Casa de Bragança, entre vários candidatos ao trono. O sermonista se apoiou nos versículos 21 e 22 do Salmo 89(88), porque eles agiriam como auxiliares da idéia central, que era, no caso, reafirmar a crença na reencarnação do Rei Encoberto. Revitalizando cada palavra dos versículos escolhidos, foi construindo seu raciocínio sobre a predição, formando duplos e simultâneos pensamentos, cismando, pensando e imaginando a forma certa para impor a sua verdade e, com isto, convencer seus ouvintes/leitores, os súditos da Coroa Portuguesa, da grandiosidade de Portugal ante o mundo que o cercava na época. Já que o reino se encontrava abalado por disputas internas e externas, havia a necessidade de um orador convincente, que inspirasse ânimo ao povo e confiança no futuro. D. João fora o escolhido, segundo Vieira, pelo próprio Deus, e, a partir dessa afirmativa, o sermonista foi reconstruindo a histórica trajetória da ascensão do Rei ao trono, tecendo complexos pensamentos, inspirados na Bíblia, sobre o motivo da escolha.

Evidentemente, ao desenvolver o sermão de exéquias, Vieira estava reelaborando tudo o que já dissera antes, com outras palavras e sob a inspiração de outros textos bíblicos. Para reafirmar a predestinação, daquele que estava morto, iniciou uma nova abertura de raciocínio, transferindo o privilégio de escolha ao tronco familiar do rei morto. Consciente de que, a partir dali, teria meios de revitalizar suas idéias premonitórias, colocou a responsabilidade de concretização do Quinto Império nas mãos do herdeiro. Conhecedor profundo dos Textos Sagrados, buscou em Macabeus, capítulo 5, versículo 62, o motivo da escolha de Deus recair em D. João, em detrimento dos outros candidatos: Ipsi autem non erant de semine virorum illorum, per quos salus facta est in Israel (Op. cit.: 238), ou seja, (Mas) eles não pertenciam à estirpe desses homens aos quais fora dado libertar Israel. D. João – e, naquele momento, também a sua descendência – havia sido escolhido por direito divino.

Ao longo do sermão, recordou a História de Portugal, as freqüentes ameaças de Castela, a defesa de D. João I, Mestre de Avis, a ligação familiar que uniu o então rei ao Conde D. Nuno Álvares, por intermédio do casamento de seus filhos, e, a partir daí, se apoiou na frase bíblica, para dignificar a estirpe do novo restaurador da Coroa. Cabia à geração de D. João IV – nova geração de restauradores –, realizar as profecias.

Et unxit eum Samuel in medio fratum ejus (op. cit.: 284): Samuel apanhou o vaso de azeite e ungiu-o (Davi) na presença dos irmãos. Davi e D. João IV, Israel e Portugal, Samuel e Vieira: para que vendo Samuel quão grandes eram os homens que Deus deixava, entendesse quão grande devia ser o que Deus escolhia. Desta forma, não apenas D. João era o escolhido; também ele – Vieira – fora escolhido por Deus para ser o revitalizador da crença na reencarnação do Rei Encoberto. Muito achou Deus nelle, quando buscando rei entre tantos príncipes, deixando a todos, só a elle elegeu, e só a elle achou: Inveni.

David. David se chama El-rei D. João nestas palavras que lhe aplicamos: mas com que propriedade? (op. cit.: 285). A partir do nome Davi, Vieira recomeçou a reconstrução de seus pensamentos, fazendo perguntas e oferecendo respostas, aproveitando-se da afirmativa que fizera no início do sermão: todas as palavras têm mistérios. Vieira analisou as palavras do trecho bíblico escolhido sob os ditames barrocos do mistério e descoberta das palavras. Usou, assim, o que Saraiva chama de “geometria decorativa”, para caracterizar o estilo barroco, ou seja, "estilo catedral", de acordo com os ensinamentos do Professor Dr. Leodegário A. de Azevedo Filho. Desenvolvendo um discurso centrado em perguntas e respostas, Vieira construiu pensamentos convergentes e, ao mesmo tempo, díspares, em que as semelhanças e oposições entre o texto bíblico e a História de Portugal em ação se uniram, sem, com isto, destruir a convicção discursiva do orador. Assim, D. João IV foi comparado a Davi. Existiam tantas semelhanças entre os dois, segundo Vieira. Ambos, afeiçoados à música; ambos, domadores de feras; ambos, tendo um filho Salomão; ambos, prudentes, vigilantes, piedosos, justos; humildes e, ao mesmo tempo, majestosos; mas, principalmente, eram semelhantes, por terem vencido o Gigante. D. João vencera a monarquia espanhola e, de acordo com Vieira, fora em tudo semelhante a Davi.

Depois de analisar as semelhanças, o sermonista recuperou a história da batalha travada entre Portugal e Espanha, mostrando as dificuldades de tal empresa, já que Portugal era militarmente inferior. Mesmo com tantas dificuldades, Davi/D. João IV derrubou o gigante espanhol. Inveni David.

Servum meum: Meu servo” (op. cit.: 287). Davi, antes de ser rei, era um fiel servo de Deus: destruiu ídolos, cultuou a grandeza do Deus de Israel, curvou-se ante a Majestade Divina. Assim, também, agiu D. João IV: propagou a fé, aumentou as missões da Índia, da China, da Guiné, do Congo, de Angola e, também, a do Maranhão, onde Vieira se encontrava à época das exéquias. D. João, segundo Vieira, era um obedientíssimo servo de Deus.

Oleo sancto meo unxi eum. Ungi-o a elle com o meu oleo santo: Oleo sancto. (op. cit.: 291)

Na concepção premonitória de Vieira, D. João fora ungido com óleo santo, exatamente como ocorrera com o Rei Davi. O rei bíblico suplicou a Deus, no Salmo 141(140): “Que o justo me bata, que o bom me corrija, que o óleo do ímpio não me perfume a cabeça, pois eu iria comprometer-me com suas maldades”; Vieira reafirmou estes versículos, ajustando-os a D. João. O rei português da nova geração de restauradores fora ungido com óleo santo, e isto era determinante para Vieira. Todos os outros reis, excetuando Davi, foram ungidos com óleo pecador.

Que o óleo do ímpio não me perfume a cabeça”. O sermonista fez a apologia das virtudes do rei morto, relembrou suas palavras de resignada aceitação ao receber uma coroa que evidentemente não fora ambicionada por D. João, justificando assim as semelhanças entre os dois reis. Mas, ao desvelar as inegáveis qualidades de D. João IV, Vieira, sutilmente, procurou diferenciá-lo do rei bíblico. Se o salmista do Salmo 141(140) [que não é outro senão o próprio Davi], tivera consciência de que o óleo do ímpio poderia seduzi-lo e implorou a Deus que o salvasse de tão terrível destino, Vieira, ao contrário, assegurou o caráter puro e intocável do rei português. O salmista Davi revelou a sua necessidade de proteção, reconheceu-se fraco e propenso a ser seduzido; o rei português, segundo Vieira, foi, ao longo da vida, um homem virtuoso, imune às seduções do mal. Aceitara ser rei, ainda segundo Vieira, porque o povo necessitava de um soberano; não que, particularmente, almejasse tal posição.

Buscando um novo reforço para suas afirmações, o sermonista retirou do Primeiro Livro de Samuel – na Vulgata do século XVII, consta como Primeiro Livro dos Reis –, capítulo 9, versículo 24, novas idéias que demonstrassem o caráter íntegro do Rei e sua grande capacidade de trabalho: “Comede, quia de industria servatum est tibi. Come, aqui está diante de ti o que se separou”.

Para o rei escolhido (o rei bíblico aludido por Vieira, nesta passagem, é Saul, primeiro rei de Israel, anterior a Davi, ungido também com óleo santo), Samuel ofereceu um banquete, em que foi servido, segundo Vieira, o ombro direito de uma rês. Esta parte do animal fora guardada especialmente para Saul, que seria coroado rei a pedido do povo de Israel. O povo de Israel queria um rei como os outros povos que o cercavam. O rei de Israel, até então, era o próprio Deus. O povo israelita já não aceitava a idéia de ter por rei apenas uma divindade. Mesmo magoado com seu povo – povo escolhido –, Deus elegeu um rei para Israel, por intermédio do profeta Samuel. Vieira explicou, aos leitores da época, porque fora reservado para Saul o ombro direito da rês. “Os reis ungidos com o óleo de Deus coroam os ombros, e não a cabeça; porque o ombro é o lugar do trabalho, e a cabeça é o lugar da dignidade” (op. cit.: 292). Esta passagem do Antigo Testamento foi ressaltada apenas para demonstrar a face de trabalhador do rei português. “Senhor, se sou necessário para meu povo, não recuso trabalho”. Esta frase, evidentemente bíblica, ou de inspiração bíblica, foi atribuída, por Vieira, a D. João. O rei aceitara a coroa porque o povo necessitava de um líder. Assim, aceitava a dignidade da coroa – a coroa sobre sua cabeça –, mas oferecia seu ombro ao trabalho, ao pesado ofício de reinar. Não recusava o trabalho, porque fora ungido com óleo santo.

Unxi eum: Ungi-o a elle” (op. cit.: 293). Neste trecho, Vieira aludiu, ironizando, aos reis dos outros reinos da Europa, à época de D. João VI. Deus ungiu com óleo santo somente ao rei português; aos outros reis ofereceu apenas a coroa, os verdadeiros ungidos foram os criados e os validos, porque esses sim possuíam o poder.

Há reis que nem reinam, nem sabem: elles são os reis, e os seus validos são os que reinam; porque os validos são os que põem e os que dispõem, e os que fazem o que querem; e assim como não reinam, também não sabem; porque nem sabem a quem se dão os prêmios, nem sabem a quem se dão os castigos, nem sabem porque culpas. (Op. cit.: 293)

Observando este trecho do sermão, não é demais lembrar que durante dezoito anos, até 1642, o reino de França foi governado pelo Cardeal Richelieu, primeiro ministro de Luís XIII. Na verdade, Vieira pôs em destaque o fato, comentando que em França “quem tinha o governo era o Cardeal Richelieu” (op. cit.: 293). Também em Espanha quem governava de fato era o valido de Filipe IV, o Conde Duque de Olivares. Depois destas certeiras críticas, o sermonista realçou a figura do falecido rei, afirmando que ele possuía a coroa e o poder de fato, reinando sobre todos, assinando os papéis com a própria mão, analisando severamente cada papel, antes de colocar-lhe a sua assinatura. De acordo com as palavras de Vieira, o rei trabalhara arduamente durante o seu reinado. Até mesmo a música era ouvida à hora da sesta e pela madrugada, para não perturbar o seu ritmo de trabalho.

Manus enim mea auxiliabitur ei, et brachium meum confortabit eum: A minha mão o ajudará, e o meu braço o esforçará. (Op. cit.: 294)

Aproveitando-se deste versículo bíblico, Vieira aludiu a um fato premonitório, quando da coroação de D. João IV. Quando o novo rei estava sendo aclamado, diante da Igreja de Santo Antônio, o braço da imagem de Cristo crucificado despregou-se e ficou estendido diante dos aclamadores. Todos viram nesse episódio uma clara demonstração do apoio de Deus para com a nova dinastia real que se iniciava. “Manus mea auxiliabitur ei”. Depois de recordar o episódio, Vieira passa a relatar os vários momentos em que Deus auxiliou as empresas do rei, como, por exemplo, a vitória sobre Castela. Novamente, busca nas palavras da Bíblia o reforço para o que tem a dizer. No Segundo Livro dos Reis, capítulo 6, versículo 18 – na Vulgata está assinalado como Quarto Livro dos Reis – o profeta Eliseu, sucessor de Elias, quando percebeu que os arameus ameaçavam investir contra Israel, orou a Deus, implorando proteção para os israelitas: “Digna-te ferir essa gente de belida”, ou seja, cegá-los momentaneamente. E Deus acatou a sugestão de Eliseu que, assim, pode levá-los aos israelitas. Depois, o profeta pede a Deus que os faça novamente enxergar e Deus atende o pedido de Eliseu. O perigo passara e os arameus estavam agora sob o poder do reino de Israel. O Rei pergunta ao Profeta se deve massacrar os arameus, recebendo resposta negativa, já que era costume entre os israelitas o massacre de prisioneiros de guerra. Ao invés de massacre, os prisioneiros recebem bom tratamento e são repatriados, depois de um grande banquete oferecido pelo rei. Algo parecido, segundo Vieira, fizera Deus aos castelhanos, impedindo assim que dominassem novamente o reino português. Deus socorrera Portugal e, para reforçar esse socorro, Vieira não hesitou em reproduzir mais um versículo bíblico, agora apoiado no Novo Testamento, em Mateus, capítulo 26, versículo 47, buscando na atitude de São Pedro, defendendo o Horto, o raciocínio certo para compor o seu discurso. Deus socorrera Portugal, como havia socorrido o povo israelita da invasão dos arameus, sem lutas. São Pedro defendeu o Horto, usando sua espada; com a espada, cortou a orelha de um soldado e foi energicamente repreendido pelo Mestre: “Guarda tua espada no seu lugar, pois todos os que pegam a espada pela espada perecerão” (Mateus, 26, 52). Deus socorrera Portugal, atrapalhando os “conselhos” do Conde de Onhate: “O Onhate allumiava bem: mas Deus, porque amava a David, infatuou o conselho de Achitofel” (op.cit., p. 294); o Conde era um bom conselheiro de guerra, mas Deus estava com D. João IV. Vieira compara o Conde de Onhate a Achitofel, e o rei de Portugal a David. Aquitofel, no Segundo Livro de Samuel – na Vulgata, Segundo Livro dos Reis – é o conselheiro de Absalão, filho de David, que pretendia destronar seu pai. “Mas Deus, porque amava a David, infatuou o conselho de Achitofel”, ou seja, não permitiu que se realizasse a vitória de Absalão.


Usando frases bíblicas – às vezes, destorcendo o sentido correto, como é o caso do versículo 47, capítulo 26, de Mateus, cum gladiis, et fustibus, aplicado à atitude do discípulo de Cristo que cortou a orelha do soldado, quando, na verdade, a frase se liga aos que vieram prender Jesus, sob a orientação de Judas –, Vieira foi compondo seu raciocínio, cujo objetivo era abrir caminho para as futuras transferências visionárias, já que o mito do Quinto Império era algo arraigado em seu espírito. Portanto, não era demais usar também um versículo de São Lucas, em que o evangelista, referindo-se ao nascimento de São João, diz: “E a mão do Senhor estava com ele” (Lucas, 1, 66). A mão do Senhor também estava com D. João, segundo Vieira, e usando a palavra mão, ligando-a à mão de Deus, foi encadeando os próprios pensamentos e impondo ao ouvinte e/ou leitor a sua verdade dos fatos que estavam ocorrendo. “E a mão do Senhor estava com ele”. Segundo Vieira, desde o início do reinado da reconquista, Deus foi um aliado do rei. Vieira, ao longo do sermão foi/vai apontando os momentos importantes que afiançaram a proteção.

Et brachium meum confortabit eum: E o meu braço ainda mais o fortificou” (op. cit.: 296). A palavra sagrada e seu mistério. A palavra sagrada não possuía mistério para Vieira, porque estava a serviço de sua engenhosidade e genialidade.

Deus não usou somente as mãos para orientar o rei de Portugal, usou também o braço, para o proteger nos momentos difíceis. Segundo Vieira, o rei não andava armado, não levava guardas quando viajava, enfim, não se protegia convenientemente. Esses cuidados, tão necessários, vinham de Deus, já que o braço de Deus o protegia. No entanto, o perigo o espreitava sob a forma do exército de Castela.

Todos estes excessos de valor destemido fazia aquelle grande coração, constatando-lhe das grandes diligencias que Castella fazia por lhe tirar a vida nas acções e nos logares mais sagrados. Ah, que se me perde aqui a minha similhança de David! Mas eu a dou por bem perdida. (op. cit.: 297)

Ah, que se me perde aqui a minha similhança de David”, ou seja, David não agiu como agiu D. João e, muitas vezes, procurou proteger-se dos inimigos. Vieira relata um episódio em que David fugiu do exército do rei Saul, subindo com seus homens para um lugar seguro. “Ascenderunt ad tutiora loca”: Subiram para o refúgio, Primeiro Livro de Samuel (na Vulgata do século XVII, Primeiro Livro dos Reis), capítulo 24, versículo 23. O sermonista, nesse trecho, procurou valorizar a coragem do rei português, diminuindo habilmente o valor de David.

O sermão das exéquias do rei D. João IV só foi encontrado depois da morte de Vieira e, segundo os apreciadores de sua obra, possui muitas falhas e lacunas, uma vez que o seu autor morreu antes de realizar a correção final. Mas, para mim, vale como documento de uma época, além de se detectar nele a face de um sacerdote de Cristo que acreditava em premonições, reencarnações, astrologia, e outras crendices censuradas pela Igreja Católica. Mas, de acordo com Antônio José Saraiva e Óscar Lopes – História da Literatura Portuguesa – a crença na reencarnação era algo muito difundido no século XVII e, assim, as crendices de Vieira não eram anormais.

O tratamento a que Vieira sujeita as Trovas do Bandarra para apontar em D. João IV o “rei Encoberto”; para demonstrar a sua futura ressurreição, uma vez que morreu sem se cumprir o Quinto Império; para transferir depois o Quinto Império para D. Afonso VI, para D. Pedro II, para seu gorado primogênito e finalmente para seu segundo, põem, é certo, o problema da sua sinceridade. Mas devemos talvez relacioná-lo com a crença cabalística na reencarnação, ou metempsicose, muito difundida entre os Judeus da época, e que já fora expressa pelo cristão-novo Manuel Bocarro Francês. Além disso, bem sabemos como o princípio lógico da não-contradição, o senso do absurdo pouco afeta as ideologias enraizadas. (Saraiva & Lopes [1979], op. cit.: 556)

Desenvolvo um estudo do texto das exéquias de D. João IV porque, a partir dele, pude constatar a habilidade de Vieira em transferir para os sucessores do rei a sua crença na reencarnação do Rei Encoberto, aquele que cumpriria a profecia sobre o Quinto Império. Assim, revisitando também outros sermões, pude observar os volteios mentais do grande sermonista para dar concretude às suas visões messiânicas. Por exemplo, no sermão oferecido secretamente à Dona Maria Francisca Isabel de Saboya, primeira esposa do rei D. Pedro II de Portugal, Vieira não escondeu seu desapontamento pelo falecimento do primogênito. Iniciou, assim, seu discurso, enviando queixas a Deus, que não estava cumprindo suas promessas, uma vez que o prometido herdeiro varão nascera, mas não sobrevivera. O pregador empenhara sua palavra, valendo-se das visionárias promessas de Deus, garantindo um filho varão para o rei D. Pedro II. Antes, suas outras afirmações não se realizaram: D. Afonso VI, predito por Vieira como a nova reencarnação do Rei Encoberto, não conseguiu terminar o seu reinado, submetendo-se ao poderio do irmão. Este, também assinalado por Vieira, por sua vez, não estava realizando o sonho do Quinto Império. Tornou-se urgente, portanto, transferir a ressurreição para o provável herdeiro varão do trono de Portugal. O herdeiro nasceu, mas, talvez, em virtude da anterior ligação, ilícita e pecaminosa, dos pais, logo depois, morreu.

Vieira recordou, ao longo do texto de pêsames, o discurso do nascimento:

Dividi aquele sermão em duas partes: uma em que desempenhei a palavra de Deus, e outra em que empenhei a minha: e a ambos estes empenhos cortou o cumprimento, e a esperança a morte. O empenho da palavra de Deus era, que na prole atenuada da décima-Sexta geração dos nossos reis havia ele de olhar e ver; isto é, lhe havia de dar um filho varão: mas como o deu e levou tão arrebatadamente, para nós o mesmo foi dá-lo, como se o não dera; e para ele o mesmo foi ser, como se não fora. (op. cit.: 37)

Para não ser condenado por seus ouvintes/leitores, como de hábito, Vieira buscou nos Textos Sagrados o material de sua defesa, e refez novamente a promessa, contando com a juventude da rainha, para uma outra e certa gravidez. “Bastava, torno a dizer, para que a soberana liberalidade do mesmo Senhor, depois de lhe tirar o primeiro, não haja de faltar em lhe dar o segundo” (op. cit.: 51). Para desgosto de Vieira, com o passar dos anos, depois do nascimento de uma filha, ficou patenteada a esterilidade da rainha.

Os sonhos de Vieira retomaram força com a morte da rainha, alguns anos depois. No sermão de exéquias, pregado em setembro de 1684, o sermonista não conseguiu disfarçar o seu contentamento. Habilmente, misturou protestos de tristeza com cânticos de confiança em relação ao futuro, já que a morte da rainha permitiria um novo casamento ao rei, ainda em condições físicas para se tornar pai. Ainda havia uma forte possibilidade de realização das antigas promessas messiânicas. E aconteceu realmente o novo casamento do rei D. Pedro com Maria Sophia Isabella, “a augustíssima de Áustria” (op. cit.: 166), proporcionando, posteriormente, o nascimento do príncipe D. João, aquele futuro rei de Portugal, que marcaria tão tristemente a História do Brasil com sua ambição desmedida.

No sermão de ação de graças pelo nascimento do novo herdeiro da coroa portuguesa, a primeira linha de raciocínio de Vieira se valeu, como de hábito, de trechos da Bíblia. O sermão sempre foi [e continua sendo], obrigatoriamente, um raciocínio que tem como tema central um pensamento bíblico, mas é evidente que a segunda premissa – a linha de raciocínio ligada aos acontecimentos sociais da família real e de Portugal – era mais importante, em virtude do orador preferir colocar em destaque a história de Portugal, que estava acontecendo, contrapondo-a com os fatos do passado e com as visões do futuro. Vieira sentiu o desenrolar dos acontecimentos históricos que envolviam Portugal no século XVII; sentiu em profundidade o seu próprio momento, ligado ao momento do reino, sabendo-o uma parte importante da História. D. João IV, o restaurador, havia retomado os poderes reais cedidos ao reino de Espanha desde a morte de D. Henrique e, isto, aconteceu no apogeu da fama do Padre Antônio Vieira como orador sacro. Assim, no sermão de ação de graças pelo nascimento do príncipe D. João, Vieira continuou não abandonando a idéia de que Portugal se destacaria como o Quinto Império e viu, nesse nascimento, a possibilidade de concretizar a sua crença, tantas vezes malograda, desde D. João IV, de que naquele Infante Deus selaria a promessa de nomear o rei de Portugal como Imperador do Quinto Império Judeu-Cristão.

Segura já a décima Sexta geração, e a promessa dela, resta só a da prole, e prole atenuada. Aqui tem os olhos divinos mais que desfazer do que fazer. Porque a prole d’El-rei D. João o quarto não foi atenuada, senão multiplicada. Diz Salomão que o fio, ou o cordão de três ramais dificultosamente se rompe: Funiculus triplex difficilè rumpitur; e tal foi a prole d’El-rei D. João, multiplicada ou triplicada em três filhos: em D. Theodosio, em D. Affonso, em D. Pedro. Destes três havia de desfazer a Providência Divina dois deles, para que ficasse a prole atenuada em um só. (op. cit.: 177)

Neste trecho, reafirmou o que já afirmara antes em relação ao avô, ao tio, ao pai e ao meio-irmão do Infante recém-nascido. Como já foi dito, depois da morte de D. João, sem a concretização das profecias, Vieira transferiu para D. Afonso a honra da reencarnação, quando demonstrou, num discurso persuasivo, que no novo rei se realizariam as promessas de Deus. As afirmações de Vieira, sempre apoiadas em suas premonições, foram todas desmentidas, até então, pelos acontecimentos reais da trajetória de vida dos assinalados. Mas, com o nascimento do Infante, surgia uma nova esperança para o velho sermonista.

A vossos olhos (todo poderoso, e todo misericordioso Senhor) a vossos olhos, posto que debaixo dessa cortina encobertos aos nossos: a vossos olhos vem hoje esta grande e nobilíssima parte de Portugal render as devidas graças pelo fidelíssimo desempenho de vossas promessas. Prometeste que havieis de olhar, e ver: Ipse respiciet, et videbit: e já temos nova certa, de que olhaste, e vistes.

Quatro anos, e mais, se contam hoje, em que pregando eu as exéquias da rainha, que está no céu, fiz dois discursos muito encontrados, um de dor, outro de consolação; um de sentimento, outro de alívio; um triste, outro alegre; um com os olhos no passado, outro com as esperanças no futuro. (op. cit.: 166)

Utilizando-se do estilo cultista no início deste segundo parágrafo do sermão, usando das oposições, mas nem por isto diminuindo o valor do texto, Vieira se refaz de sua longa decepção. Depois, para provar a recuperação de suas idéias, buscou na Bíblia vários trechos que comprovariam o desempenho da palavra de Deus. Recordou a História de Portugal, recordou as visões de Afonso Henriques, que sob inspiração divina previu uma desgraça para o reino de Portugal, mas previu também que na décima sexta geração se atenuaria a prole, ou seja, diminuiria os sofrimentos do reino, por meio de uma nova dinastia. A profecia se realizou com o desaparecimento de D. Sebastião, sem deixar herdeiros, com o curto reinado de D. Henriques, rei-sacerdote, que também não deixou herdeiros, e com a submissão da Coroa Portuguesa à Coroa Espanhola.

Diz Vieira:

Vejamos agora quem foi a décima-Sexta geração d’El-rei D. Afonso I, e quem foi, ou é a prole atenuada da mesma geração décima Sexta. A décima Sexta geração d’El-rei D. Afonso o primeiro, ninguém duvida, que foi El-rei D. João o quarto de eterna memória: e a prole atenuada d’El-rei D. João o quarto também não se pode duvidar, que é El-rei D. Pedro nosso senhor, que Deus guarde; porque depois do falecimento de seus irmãos, nele ficou a décima Sexta geração em um só filho, e por um fio. Segue-se logo com evidência, que na pessoa d’El-rei D. Pedro se cumpriu a atenuação da prole, e que à mesma pessoa d’El-rei D. Pedro prometeu Deus o olhar e ver de seus olhos. (op. cit.: 167)

Além das previsões de Afonso Henriques, havia as predições messiânicas de Bandarra, nas quais o sermonista depositava inegável crédito, mesmo colocando em risco o fiel cumprimento da Doutrina Cristã.

O chamado “Império Consumado de Cristo” era um antigo ideal dos portugueses e Vieira muito contribuiu para a sua propagação. Esse mito, segundo Antônio José Saraiva e Óscar Lopes, era baseado numa mistura de messianismo nacional (sebastianismo e bandarrismo), missionarismo sem fronteiras e do messianismo judaico, que estava (e está) à espera do Salvador.

Vieira acreditou nessas profecias com sinceridade e, por isto, conseguiu dar sentido aos seus vários discursos paradoxais sobre o assunto. Graças também à habilidade discursiva, e as proteções externas, conseguiu livrar-se da Inquisição, que o perseguia, por ver nele uma ameaça para com a ortodoxia cristã.

Vieira acreditou até o fim de sua vida na possibilidade de ver realizada a profecia do Quinto Império Judaico-Cristão, o qual, de acordo com suas crenças, seria edificado pelos portugueses (povo escolhido por Deus). Infelizmente, morreu sem ver realizado seu sonho, mas as verdades momentâneas, que o animaram a acreditar até o fim, estão registradas em seus sermões, e são hoje um precioso material que revela, por um ângulo particular (o ponto de vista de um supersticioso e sonhador sacerdote do século XVII), um longo trecho da História de Portugal.


Este ensaio teórico-crítico (sobre os sermões históricos de Padre Antônio Vieira) está registrado no Ministério de Educação e Cultura (MEC) / Biblioteca Nacional – RJ ¾ Registro de Direitos Autorais ¾ e será publicado (se não houver patrocinador que se interesse pela publicação em livro), em breve, na coletânea de Ensaios de Teoria Literária de Neuza Machado, Editora NMACHADO (Editora da Autora).