Quer se comunicar com a gente? Entre em contato pelo e-mail neumac@oi.com.br. E aproveite para visitar nossos outros blogs, o "Neuza Machado 2", Caffe com Litteratura e o Neuza Machado - Letras, onde colocamos diversos estudos literários, ensaios e textos, escritos com o entusiasmo e o carinho de quem ama literatura.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

CECÍLIA MEIRELES E SEU "ROMANCEIRO" PÓS-MODERNO: ROMANCE XXII OU DO ANIMOSO ALFERES


CECÍLIA MEIRELES E SEU “ROMANCEIRO” PÓS-MODERNO: ROMANCE XXVII OU DO ANIMOSO ALFERES

NEUZA MACHADO

Graças ao fenômeno estilístico denominado autonomia das partes, o poema épo-lírico de Cecília Meireles poderá ser lido sem seguir uma ordem pré-estabelecida.

Hoje, neste meu blog, valendo-me da criatividade poética de Cecília Meireles, o canto escolhido para ser apresentado aos leitores-internautas (que sempre me honram com suas visitas) se coloca como uma homenagem aos muitos corajosos brasileiros que, assim como Tiradentes (no final do século XVIII), se empenharam patrioticamente – por vezes arriscando a própria vida – pelo bem-estar sócio-econômico da maior parte necessitada de nosso povo (aquela maior parte em situação de extrema miséria).



ROMANCE XXVII OU DO ANIMOSO ALFERES

Cecília Meireles

Pelo monte claro,
Pela selva agreste
que março, de roxo,
místico enfloresce,
cavalga, cavalga
o animoso Alferes.

Não há planta obscura
que por ali medre
de que desconheça
virtude que encerre,
– ele, o curandeiro
de chagas e febres,
o hábil Tiradentes,
o animoso Alferes.

Por aqui, descansa;
ali se despede,
que por toda parte
o povo o conhece.
Adeuses e adeuses,
sinceros e alegres;
a amigos, mulatas,
cativos e chefes,
coronéis, doutores,
padres e almocreves...
Adeuses e adeuses,
– que rápido segue,
a mover os rios,
a botar moinhos
e barcos a frete,
lá longe, lá longe,
o animoso Alferes.
A bússola mira.
Toma para o leste.
Dez dias de marcha
até que atravesse
campinas e montes
que com os olhos mede:
tão verdes... tão longos...

(E ninguém percebe
como é necessário
que a terra tão fértil,
tão bela e tão rica
por si se governe!)

Águas de ouro puro
seu cavalo bebe.
Entre sede e espuma,
os diamantes fervem...

(A terra tão rica
e – ó almas inertes! –
o povo tão pobre...
Ninguém que proteste!
Se fossem, como ele,
a alto sonho entregue!)

Suspiram as aves,
a tarde escurece.
(Voltará fidalgo,
livre de reveses,
com tantos cruzados...)
Discute. Reflete.
Brinda aos novos tempos!

Soldados, mulheres,
Estalajadeiros,
– a todos diverte.
(Por todos trabalha,
a todos promete
sossego e ventura
o animoso Alferes.)

Deus, no céu, revolto,
seu destino escreve.
Embaixo, na terra,
ninguém o protege:
é o talpídeo, o louco,
– o animoso Alferes.

Mas, dourado e roxo,
o campo alvorece.
Desmancham-se as brumas
nos prados celestes.
Acordam as aves
e as pedras repetem
músicas, rumores,
do dia que cresce.
Move-se a tropilha:
que outra vez se apreste
o macho rosilho
do animoso Alferes.

Adeuses e adeuses...
Talvez não regresse.
(Mas que voz estranha
para frente o impele?)
Cavalga nas nuvens.
Por outros padece.
Agarra-se ao vento...
Nos ares se perde...
(E um negro demônio
seus passos conhece:
fareja-lhe o sonho
e em sombra persegue
o audaz, valente,
o animoso Alferes.)

Que importa que o sigam
e que esteja inerme,
vigiado e vencido
por vulto solerte?
Que importa se o prendem?
A teia que tece
talvez em cem anos
não se desenrede!
Toledo? Gonzaga?
Alceus e Glaucestes?
– Nenhum companheiro
seu lábio revele.
Que a língua se cale.
Que os olhos se fechem.
(Lá vai para frente
o que se oferece
para o sacrifício,
na causa que serve.
Lá vai para sempre
O animoso Alferes!)

Adeus aos caminhos!
– montes, águas, sebes,
ouro, nuvens, ranchos,
cavalos, casebres... –
Olham-no de longe
os homens humildes.
E nos ares ergue
a mão sem retorno
que um dia os liberte.
(Pois que importa a vida?
Aqui se despede
do sol da montanha,
do aroma silvestre:

– venham já soldados
que a prender se apressem;
venham já meirinhos
que os bens lhe sequestrem;
venham, venham, venham...
– que sua alma excede
escrivães, carrascos,
juízes, chanceleres,
frades, brigadeiros,
maldições e preces!

Venham, venham, matem:
ganhará quem perde.
Venham, que é o destino
do animoso Alferes.)

De olhos espantados,
do rosilho desce.
Terra de lagoas
onde a água apodrece.
Janelas, esquinas,
escadas... – parece
que há sombras que o espreitam,
que há sombras que o seguem...

Falas sem sentido
acaso repete,
– pois sente, pois sabe
que já se acha entregue.

Perguntas, masmorras,
sentença... Recebe
tudo além do mundo...

E em sonho agradece,
o audaz, o valente,
o animoso Alferes.

(MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. 13. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989: 114 - 119.

Nenhum comentário:

Postar um comentário