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domingo, 29 de abril de 2012

CELSO FURTADO: O NOVO CONTEXTO - O NOVO CONTEXTO DO BRASIL DEPOIS DA DITADURA


CELSO FURTADO: O NOVO CONTEXTO - O NOVO CONTEXTO DO BRASIL DEPOIS DA DITADURA

NEUZA MACHADO

Continuando a re-visitar os pensamentos de Celso Furtado, em sua versão do que ocorreu no Brasil, a partir de 1964 até ao final dos anos oitenta, permito-me postar a continuação do texto anterior, aqui publicado em 22-04-2012 – “UMA INTERPRETAÇÃO DO BRASIL” –, consciente de que os poucos seguidores deste meu blog, e os que por aqui passarem rapidamente e se interessarem pelo assunto, saberão repensar estas importantes informações de nosso ainda recente passado terceiromundista.

Não será demais realçar que as informações legadas aos brasileiros neste importantíssimo livro, editado em 1991, foram pensadas e repensadas e conscientemente publicadas por um intelectual que foi obrigado a se afastar do Brasil e, inevitavelmente, a respirar os “ares do mundo”, durante a sua peregrinação imposta pela ditadura, mas que, nem por um minuto, deixou de pensar em sua terra de origem e nos milhões e milhões de brasileiros que aqui viviam em extrema penúria.


O NOVO CONTEXTO

Celso Furtado

Algumas coisas me pareciam claras. Afigurava-se-me evidente que o processo de urbanização-industrialização não tivera correspondência na evolução dos estratos sociais que, de uma outra forma, controlavam os centros do poder político. Tampouco me escapava que a precoce emergência de uma sociedade de massas criara sérios obstáculos ao funcionamento das instituições políticas nos moldes adotados no Brasil. Também estava fora de dúvida que os militares puderam legitimar-se apresentando-se como árbitros – debeladores da subversão rampante, restauradores da “democracia”.

Mas não se via claro em que direção se marchava. Será que os militares intervieram, à semelhança de 1945, para dar uma freada no populismo, na qualidade de simples gendarmes das classes dominantes tradicionais? Meu ponto de vista era outro. De meus contatos com os quadros dirigentes da Escola Superior de Guerra ficara-me a convicção de que ali se formara um centro de pesquisas com a pretensão de pensar o Brasil, e que esse pensamento já se encontrava em estado operacional sob a forma de um projeto de “organização nacional”. Esse projeto sofrera forte inflexão com o advento da Revolução Cubana, deslocando-se do eixo do desenvolvimento para o da segurança. A influência da doutrina norte-americana da “contra-insurgência” fora considerável e contaminara toda a linha de pensamento antes voltada prioritariamente para a ideia de desenvolvimento nacional.

O novo enfoque tudo subordinava à premissa de que vivemos uma confrontação em escala planetária, a qual obedece às regras de um conflito bélico. A morfologia desse conflito podia ser nova, mas sua essência derivava da velha lógica da guerra. Mais importante ainda: em razão do impasse termonuclear, o objetivo dessa guerra tendia a ser cada vez mais o debilitamento do inimigo interno, sua desarticulação. A “guerra revolucionária”, que se imaginava estar em processo adiantado na América Latina – o inimigo realizara avanços significativos com a tomada do poder em Cuba e a instalação de focos permanentes de guerrilhas na Guatemala, na Venezuela, na Colômbia e no Peru –, constituía a referência central na formulação das políticas nacionais.

Essa nova visão levaria os militares brasileiros a rever o “projeto de organização nacional”, cuja referência básica passava a ser o problema da segurança, com ênfase na ideia de “insurgência”. Em um documento reservado da Escola Superior de Guerra, dizia-se: “a impressão crescente nos Estados Unidos é de que, até o fim do século, não haverá um enfrentamento direto com a URSS, e sim com o comunismo internacional, em diferentes áreas da Ásia, África e América Latina”. Dessa forma, o cenário do conflito mundial era arranjado de forma que cabia a nós, povos do Terceiro Mundo, ocupar a linha de frente. Estávamos, portanto, mais expostos do que os principais contendores, aqueles que disputavam a hegemonia planetária. No mesmo documento, dizia-se: “o êxito do comunismo em qualquer país da América Latina significa ameaça – maior ou menor – à segurança dos Estados Unidos e do Brasil”. Dentro dessa nova visão, o Brasil deveria apoiar a criação de uma Força Interamericana de Paz e “reestruturar, rearticular e reequipar suas Forças Armadas, tendo em vista particularmente o seu emprego na Guerra Revolucionária no Brasil e na América Latina”. Era uma doutrina que pretendia legitimar a intervenção, inclusive militar, nos demais países da América Latina, bem como a utilização de tropas estrangeiras no Brasil.

Refletindo sobre esses pontos, na época ainda não explicitados cabalmente, eu me inclinava a ver na tomada do poder civil pelos militares brasileiros algo distinto do ocorrido no passado entre nós e nas outras nações latino-americanas. Reconhecida a prioridade do problema da confrontação mundial, a segurança dos Estados Unidos teria forçosamente de prevalecer sobre tudo o mais. Era de esperar, todavia, uma contrapartida de apoio financeiro suficientemente amplos para modificar a situação de estrangulamento externo que vinha freando o desenvolvimento brasileiro. Os militares se apresentavam como fiadores desse novo relacionamento com os Estados Unidos, que somente se efetivaria caso fosse implantada uma ordem institucional interna por eles tutelada. Cabia pensar em um pacto dos militares com segmentos das classes dirigentes, de preferência aqueles mais voltados para a modernização, vale dizer, os grupos empresariais ligados às indústrias que compõem o “poder nacional”. No documento já referido, incluía-se como um dos principais objetivos “intensificar a política de industrialização, com prioridade para as indústrias mais ligadas à Segurança Nacional”.

A tutela exercida pelos militares sobre o governo tornava-se pré-requisito para conter as forças distributivas de que se alimentava o populismo, e assegurar que a visão de confrontação planetária viesse a prevalecer na formulação da política externa brasileira. Não era difícil perceber que os requisitos para a retomada do crescimento começavam a se explicitar dentro de um quadro em que a tutela militar se configurava como elemento essencial. Quanto mais aprofundava a análise, mais se fazia claro para mim que o Brasil penetrava em uma fase de sua evolução política na qual não havia espaço para que as forças de base popular se expressassem , e onde a presença tecnocrática teria peso crescente. A perfeita sincronia dos militares brasileiros com o governo norte-americano vinha de ser comprovada pelo embaixador Lincoln Gordon em palavras entusiastas pronunciadas no recinto da agora altamente prestigiada Escola Superior de Guerra, nos dias imediatos ao golpe de 31 de março de 1964: “Não me surpreenderia se os historiadores do futuro assinalarem a Revolução Brasileira como a mais decisiva vitória da liberdade na metade do século XX”. Era evidente que os acontecimentos no Brasil estavam sendo vistos como, acima de tudo, um episódio de guerra em escala planetária em que estavam empenhados os Estados Unidos.

Na medida em que avançava em minha análise do processo político brasileiro, mais me convencia de que um corte definitivo ocorrera em minha vida. Não porque devesse enfrentar dificuldades de várias ordens, comuns aos que vivem no estrangeiro como apátridas, dificuldades que podem chegar a ser consideráveis. Mas porque o sentido de muitas coisas se modificara bruscamente para mim. Com efeito: a opção que fizera de dedicar-me ao estudo das ciências sociais, em particular da economia, fora fruto de meu desejo de entender o Brasil e também de tentar contribuir para dar um sentido de justiça social à ação de seu governo.

O reconhecimento de que a sociedade brasileira estava marcada pela herança das sequelas da escravidão e pelas taras de um processo de colonização em que o controle do acesso às terras fora utilizado para explorar a massa da população, ao ponto de desumanizá-la, e a visão de que o país acumulou considerável atraso no quadro de uma civilização implacável com os retardatários foram fator decisivo na construção de meu projeto de vida. E a ilusão, que chegou a dominar meu espírito em certo momento, de que uma feliz conjuntura internacional – consequência da grande depressão dos anos 30 e do conflito mundial dos anos 40 – abrira uma brecha pela qual quiçá pudéssemos nos esgueirar para obter uma mudança qualitativa em nossa história, agora se desvanecia. O Brasil continuaria prisioneiro de suas estruturas anacrônicas, crescendo em benefício de uma minoria privilegiada, acrescentando cada ano pelo menos um milhão de pessoas à sua imensa legião de desnutridos, desabrigados, desvalidos.

Não me fugia a ideia de que a História é um processo aberto, sendo ingenuidade imaginar que o futuro está cabalmente contido no passado e no presente. Mas, quando toda mudança relevante é fruto da interveniência de fatores externos, estamos confinados ao quadro da estrita dependência. E os povos que se privarem de toda margem de ação para construir o próprio destino – para romper a cadeia de forças que moldaram seu passado – não têm propriamente história. As tendências que se manifestavam no Brasil levavam a pensar que as mudanças significativas já não seriam fruto da ação de fatores endógenos. Assumíamos uma situação de dependência – como tantos povos que no passado aceitaram a vassalagem que lhes assegurava aparente proteção – com plena consciência de que estava em jogo uma confrontação mundial na qual pouco podíamos influir e que condicionava nosso destino. Os novos líderes do país pareciam partir da hipótese de que as linhas gerais desse quadro estavam definidas num horizonte de tempo que se estendia até o fim do século. Como nos cabiam responsabilidades grandes no esforço de conter a “luta revolucionária” que se manifestava nos países nossos vizinhos, a possibilidade de uma autêntica cooperação com esses países no plano da integração dos mercados se reduzia. Professar a doutrina da intervenção aberta na casa do vizinho é fechar a porta à ideia de autêntica integração dos espaços econômicos.

Não achava eu propriamente que constituíssemos uma “geração perdida”, e tampouco admitia que nossos esforços houvessem sido inteiramente inúteis. Algo sobraria de significativo do que havíamos feito. Mas como desconhecer que a nossa geração logo seria vista como superada? Nossa esperança de que o quadro da dependência que nos constrangia pudesse ser rompido – o que havia ocorrido no caso do Japão no curso de uma geração –, de que nosso desenvolvimento viesse a ser mais e mais fruto de decisões internas, de que nossa política daria prioridade ao social, de que escaparíamos da armadilha do subdesenvolvimento sem exigir, da população pobre, sacrifícios adicionais – nossa esperança seria agora vista como devaneio idealista, hipótese sem substância, doutrina anacrônica.

Essa passagem da visão histórica para perspectiva pessoal nem sempre se faz sem trauma. Uma geração superada raramente percebe de imediato que a corrente dominante da História mudou de rumo, que sua atuação se transformou em pura gesticulação, e seu discurso cacofonia para auditórios pouco atentos. Ainda assim, a geração superada pode guardar extraordinária lucidez e, por isso, contribuir para que a memória histórica não se dilua completamente. Os movimentos que triunfam, em particular aqueles que conduzem à tomada do poder pela força, tendem a mergulhar os seus líderes em profunda obtusidade, mesmo que isso não reduza no tempo o papel histórico que desempenham.

Minhas longas conversa com José Medina me ajudaram a perceber que a situação brasileira somente podia ser entendida se colocada no quadro de conjunto das Américas, “no Hemisfério”, como gostam de dizer os norte-americanos. Não era sem razão que uma quartelada no Brasil, que tantas já conhecera, era vista como um grande acontecimento político pelos corifeus de Washington. A chave de tudo parecia estar em Cuba, essa ilha cuja história ficara defasada em razão da incapacidade dos espanhóis a fins do século XIX para inserir-se na contemporaneidade. Os cubanos, já iniciada a segunda metade do século XX, se empenharam na luta para contemplar a construção de seu Estado nacional. Fidel Castro fora claro a este respeito, quando declarou, ainda na Sierra Maestra, que seu “destino era confrontar os ianques”.

Convém recordar que a famosa “emenda Platt”, incorporada à constituição cubana, assegurava aos americanos o direito de intervir nos assuntos internos da ilha, e que essa emenda foi suspensa por decisão unilateral no governo de F. D. Roosevelt, no quadro da “boa vizinhança”. Ora, essa luta pela afirmação de um Estado nacional foi arrastada pelas águas turbulentas da Guerra Fria. Que Kruchov haja levado o mundo à beira de uma confrontação nuclear para consolidar a independência cubana vis-à-vis dos Estados Unidos é fato único na história contemporânea, que só encontra explicação na psicologia do líder soviético, inclinado a golpes espetaculares e a subestimar o adversário. Mas a partir dessa ato quixotesco, que resultou em humilhação para os soviéticos, todo movimento visando a reduzir ou minorar a dependência externa de um país latino-americano tendeu a ser visto em Washington como deslocação de uma peça na confrontação com a União Soviética.

Como o apoio dado a Cuba estava longe de poder ser estendido a outros países da região – os meios de que dispunham os soviéticos não davam para tanto –, o resultado final foi o reforço considerável da tutela que exercem os Estados Unidos sobre as nações latino-americanas. Cuba foi condenada ao isolamento e não teve como escapar a uma estreita dependência da União Soviética, e os demais países latino-americanos se viram submetidos a estreita surveillance, com risco de internacionalização de seus conflitos internos. Somente assim se explica que a intensificação do confronto entre populistas e conservadores ocorrida em 1964 no Brasil – país que nem sequer dispunha de partidos de esquerda de alguma significação – haja mobilizado a esquadra americana e suscitado extrema tensão em Washington.

Era essa a nova moldura dentro da qual tínhamos de nos mover. Os grupos de extrema esquerda, os movimentos de guerrilha podiam despertar simpatias enfrentando as ditaduras militares, mas não conduziriam a nada concreto, quando não fosse ao endurecimento das forças de direita e ao florescimento da Internacional dedicada ao combate aos movimentos subversivos.

Minhas conversas com José Medina contribuíram para moderar meu otimismo congênito. Nós, da periferia – parecia a ele –, tínhamos do mundo uma visão distorcida. Carecíamos de perspectivas para globalizar, para captar o sentido dos processos que determinam o curso dos acontecimentos em que estamos envolvidos. Não nos apercebemos de que somos, cada vez mais, peças de uma engrenagem abrangente. A erupção do caso cubano nos empurrara brutalmente para a zona de maior turbulência. Seríamos doravante escrutinados de muito mais perto. Como observara Richard Nixon, a esra em que a América Latina suscitava ideias amenas – “siesta, mañana, cha-cha-cha”, em suas próprias palavras – fora encerrada definitivamente. Nossa história se desprovincianizava, malgrado nós mesmos. Estávamos agora sendo integrados em correntes que envolviam o planeta nas direções leste-oeste e norte-sul. Teríamos de nos preparar para agir nesse novo quadro.

Essas reflexões fizeram-me consciente de que tudo se tornara mais complexo, de que eventos em que estávamos envolvidos deviam ser observados de perspectiva mais ampla; havia que captar o sentido da longa duração, como Fernand Braudel. Assim, fui-me convencendo da conveniência de ganhar certa distância com respeito aos acontecimentos do dia-a-dia – do curto prazo, como dizem os economistas –, do pouco que as pessoas em condições similares às minhas podiam fazer para influenciar o quadro político brasileiro. Ocorrera um terremoto e teria de passar algum tempo para que uma outra paisagem se esboçasse.

O que importava no momento era buscar o sentido do acontecer histórico, em sua dimensão mais ampla, vislumbrar a lógica do que ocorria nos grandes centros de poder. Era contribuir para que a próxima geração no Brasil viesse a exercer o poder com melhor percepção da realidade mundial. Havíamos sido incorporados ao processo de globalização da História aos empurrões e perdêramos a inocência dos que são protegidos pela ignorância. Ora, quem supera a ignorância ganha graus de liberdade. O aprendizado podia ser longo, mas, cedo ou tarde, uma nova geração terá de perceber que o Brasil fora arrastado a uma guerra errada. Seu maior problema não era a “insurgência”, e sim a fome; por outro lado, as relações econômicas internacionais estavam em rápida evolução, independentemente da confrontação política alimentada pela Guerra Fria. Estávamos aprisionados dentro de círculo de giz que alianças impostas nos faziam crer intransponível. Algo podia ser feito para ajudar a geração vindoura a abrir seu caminho. Era imperioso, por exemplo, manter abertos os canais de circulação de informações, e contribuir para que esses canais fossem adequadamente utilizados. Enfim, cumpria adotar o que Lindell Hart chamou de indirect approach: evitar a confrontação quando o inimigo é evidentemente mais forte; flanqueá-lo e como Fabiano, construir para o futuro durante a retirada.

Pareceu-me importante sair do primeiro plano, das confrontações táticas que produzem material para os mass-media, e que na prática tendem a reforçar aqueles que se instalaram nas posições dominantes; circular no mundo universitário tão-somente em função do objetivo principal, que era aprofundar o conhecimento do processo de dominação-dependência no quadro da Guerra Fria – processo que tinha mudado a História do Brasil e marginalizado aqueles que acreditaram no desenvolvimento autônomo do país. Era de evitar, nessa primeira fase fixar-me em cidades como Nova York, Paris ou Londres, centros fabricadores e devoradores de notoriedades. As circunstâncias me haviam transformado em notícia veiculada pela imprensa internacional, o que me assegurava, ao menos por algum tempo, certa proteção. Mas como não perceber que isso era fogo de palha e que logo se colocariam os problemas reais de ter documentação para viver e circular fora de meu país, de dispor de meios materiais de subsistência e condições para realizar o trabalho intelectual que era a razão de ser de meu viver?

Para mim era evidente que, sem uma clara percepção do que estava acontecendo nos Estados Unidos, o próprio sentido das transformações em curso em escala planetária nos escaparia. Era conveniente aproveitar-me da onda de simpatia que se formara em torno de minha pessoa no mundo universitário americano para obter cobertura do Departamento de Estado, indispensável para residir nos Estados Unidos. Eu dispunha de um passaporte diplomático, a rigor sem validade. Bastaria que a embaixada americana no Chile cumprisse as normas ordinárias – solicitasse a carta da embaixada do Brasil explicitando minha missão, que acompanha correntemente qualquer pedido de visto em passaporte diplomático – para eu ser imobilizado e ver impossibilitada minha entrada nos Estados Unidos. Isso me obrigaria a abandonar parte essencial da tarefa que me havia proposto. Graças ao apoio que obtive das universidades e da imprensa americanas, este obstáculo foi superado. Decidi então fixar-me na Universidade de Yale, a meio caminho entre Nova York e Boston, e onde existia um dos principais centros de estudos do desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo. Tinha consciência de que me afastava do Brasil e da América Latina por muito tempo, e não me escapava que os obstáculos a enfrentar não seriam pequenos.

(FURTADO, Celso. Os Ares do Mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991)

quinta-feira, 26 de abril de 2012

ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO: EXERCÍCIO CRÍTICO-FENOMENOLÓGICO SOBRE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL


ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO: EXERCÍCIO CRÍTICO-FENOMENOLÓGICO SOBRE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL

NEUZA MACHADO

Aos leitores deste meu blog, faço-lhes um convite para lerem o meu exercício crítico-fenomenológico, sobre a obra ficcional de Rogel Samuel O Amante das Amazonas, cujo título é Esplendor e Decadência do Império Amazônico. O texto completo poderá ser encontrado em:

portalentretextos.com.br/webroot/files/prt_livrosonline/esplendor-e-decadencia-do-imperio-amazonico.pdf


O romance O Amante das Amazonas, para os que desejarem ler esta singularíssima obra do escritor Rogel Samuel, (um romance da pós-modernidade que, diga-se de passagem, deverá ser lido em primeiro lugar, para que, posteriormente, o meu estudo crítico-fenomenológico possa tornar possível a compreensão do leitor), se encontra disponibilizado em:



O meu estudo teórico-crítico-fenomenológico O Fogo da Labareda da Serpente, sobre a mesma obra O Amante das Amazonas, de Rogel Samuel, poderá também ser lido em:



Agradecendo-lhes sempre as visitas aos meus blogs e as muitas demonstrações de apreço recebidas através de carinhosos e-mails, envio-lhes o meu Muito Obrigada a Todos!

No intuito de apresentar-lhes um pouco do que escrevi sobre o romance de Rogel Samuel O Amante das Amazonas, ofereço-lhes um pequeno trecho de Esplendor e Decadência do Império Amazônico:


(Trecho do livro Esplendor e Decadência do Império Amazônico)

“É evidente que, em relação às obras, as ideias permanecem sempre breves, e que nada pode substituir as primeiras. Um romance que não fosse mais do que o exemplo de gramática que ilustra uma regra ─ ainda que acompanhada de sua exceção ─ seria naturalmente inútil: bastaria o enunciado da regra. Exigindo para o escritor o direito à inteligência de sua criação, e insistindo sobre o interesse que a consciência de sua própria pesquisa representa para ele mesmo, sabemos que é sobretudo ao nível do estilo que esta pesquisa se realiza, e que no instante da decisão nada está claro. Assim, após ter indisposto os críticos ao falar da literatura com a qual sonha, o romancista se sente repentinamente desarmado quando esses mesmos críticos lhe pedem: “Explique-nos portanto por que você escreveu esse livro, o que significa, o que você pretendia fazer, com que intenção você empregou esta palavra, por que construiu esta frase desse modo?”

"Diante de semelhantes perguntas, seria possível dizer que sua “inteligência” não lhe serve para mais nada. O que ele quis fazer foi apenas aquele livro mesmo. Isto não quer dizer que ele está sempre satisfeito com esse livro; mas a obra continua a ser, em todos os casos, a melhor e a única expressão possível de seu projeto. Se o escritor tivesse tido a faculdade de dar uma definição mais simples de seu projeto, ou de reduzir suas duzentas ou trezentas páginas a uma mensagem em linguagem clara, de explicar o funcionamento de seu projeto palavra por palavra, em suma, de dar a razão de seu projeto, não teria sentido a necessidade de escrever o livro. Pois a função da arte não é nunca a de ilustrar uma verdade ─ ou mesmo uma interrogação ─ antecipadamente
conhecida, mas sim trazer para a luz do dia certas interrogações (...) que ainda não se conhecem nem a si mesmas.” (Alain Robbe-Grillet)

Com estas palavras de Alain Robbe-Grillet, sobre o novo romance (não apenas francês), o fenômeno literário que marcou o globalizado e caótico século XX (o século que propiciou a difícil transição histórica da modernidade para a pós-modernidade), palavras estas escritas no final da década de cinquenta, exprimo o meu empenho de dialogar reflexivamente com a obra, de Rogel Samuel, denominada O Amante das Amazonas (publicada em segunda edição, em 2005, pela editora Itatiaia de Belo Horizonte). Recupero as asserções de Robbe-Grillet sobre o narrador do século XX (neste momento interativo da crítica literária no Brasil, e neste início de século XXI), porque medito sempre o enigma criador do ficcionista do todo do século passado, independente de sua localização de nascimento, e percebo que as “inovações” ficcionais, daquele momento, continuam hoje sob “renovadas” roupagens, e as questões teórico-críticas (que enlaçam o escritor ficcional), levantadas por Robbe-Grillet, continuam ainda a fazer parte da realidade sócio-intelectual do crítico literário brasileiro. Retomo o assunto, porque, nestes tempos pós-modernos, tempos globalizados, o escritor (seja de qualquer nacionalidade, poeta ou ficcionista ou dramaturgo ou outro direcionamento literário) se coloca na obrigação de explicar a sua criatividade à chamada imprensa cultural dominante. É matéria verdadeira que somente algumas questões visíveis são questionadas, porque, as invisíveis vão estar resguardadas no plano particular do autêntico texto-obra, a exigir que o leitor-especulador do momento histórico de sua publicação, ou de épocas futuras, as venha examinar. Sem o aval das explicações exigidas (uma vez que os textos ficcionais da pós-modernidade são de difícil entendimento), o escritor dos dias de hoje não se contempla reconhecido pela mass media como criador literário, perdendo por tal desvalimento a oportunidade de ser lido, o que, convenhamos, é o anseio normal de quem escreve.

Esta propedêutica, objetivando espelhar a posição do crítico literário atual, se fez/faz-se necessária, porque a enxergo apontada em minha direção, uma vez que, para interagir com a diferenciada obra ficcional de Rogel Samuel, respeitante ao espaço geográfico do Amazonas ─ social e mítico ─, lugar pouco conhecido à minha própria percepção intelectiva, movi-me, inicialmente, em busca das estimáveis explicações do próprio escritor, acauteladas nas diversas entrevistas por ele permitidas aos jornalistas-internautas. (...).

Por intermédio das Entrevistas, Rogel Samuel ofereceu, aos leitores de seu romance, encaminhamentos seguros sobre a natureza de sua criatividade ficcional a qual reputo como autenticamente Pós-Moderna/Pós-Modernista de Segunda Geração. Autêntica, porque há no momento inautênticos autores que se fazem passar por ficcionistas pós-modernos, mas que são, em verdade, escritores-mercadores de uma literatura de massa sem nenhum crédito no âmbito da Arte Literária. Apenas foram conceituados pela mídia enganosa deste momento sócio-intelectual como bons escritores, para visarem ao lucro em detrimento da qualidade de um texto. O romance de Rogel Samuel, pelo exame teórico-interpretativo-reflexivo, ultrapassa tais exigências comerciais, pelo fato de ser uma narrativa de alto nível criativo e se inserir no que qualifico como peculiar obra pós-moderna.

E eis que imediatamente surge a pergunta (por conjetura, talvez, um dos motivos de aborrecimento de Robbe-Grillet nos anos cinquenta, quando se revoltava contra as interferências críticas de seu momento): Como classificar um texto ficcional como autenticamente criativo e pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, se o mesmo ainda não passou pelo crivo do tempo? O texto já não seria normalmente pós-moderno, uma vez que seu autor é nato de uma atualíssima dinâmica social já conceituada como pós-moderna, ou seja, é um indivíduo provindo de uma era específica denominada como Era Pós-Moderna? Outras interferências, já exaustivamente dialetizadas criticamente, poderiam aparecer, no intuito de desqualificar as minhas inferências teórico-críticas reflexivas, uma vez que o mundo, no século XX, se dilatou, e os pseudos críticos, promotores da mass media, abraçados a uma causa imperialista voltada para o consumo literário imediato, evidentemente ligado ao lucro, se fortaleceram, contaminando os leitores emocionais com a chamada literatura de massa (a maior parte vergonhosamente sem qualidade, inclusive sem qualidade paraliterária). Então, como classificar um texto narrativo em prosa, escrito nos anos finais do século XX, como autêntica ficção pós-moderna? Como classificar uma ficção paradigmática, que, certamente, irá “incomodar” aos leitores do futuro, obrigando-os a repensarem suas próprias dinâmicas existenciais, incômodo este que, não tenho dúvida, se revelará a partir de um romance diferenciado (e o romance O Amante das Amazonas é diferenciado) escrito nos anos finais do século XX, muito antes de seus nascimentos (dos leitores do futuro, evidentemente).

“[A literatura] é algo vivo e o romance, desde que existe, sempre foi novo. Como poderia o estilo do romance ter permanecido imóvel, fixo, quando tudo evoluía ao seu redor ─ bem rapidamente, na verdade ─ no decorrer dos últimos cento e cinquenta anos? Flaubert escrevia o novo romance de 1860, Proust escrevia o novo romance de 1910. o escritor deve aceitar carregar sua própria data com orgulho, sabendo que não existem obras-primas na eternidade, mas apenas obras na história; e que elas só sobrevivem na medida em que deixaram o passado atrás de si e que anunciaram o futuro. (Alain Robbe-Grillet)

Por meu ponto de vista teórico-crítico, acrescido de conhecimento intelectual interativo, adquirido a partir do contato permanente com os textos técnicos e/ou artísticos, ponto de vista que não se deixa influenciar por teóricos e/ou críticos de plantão, posso dizer que a ficção pós-moderna/pós-modernista de Rogel Samuel irá “incomodar” (retirar da comodidade, induzir a pensamentos dialetizados) o leitor-intérprete de momentos históricos posteriores. Os leitores do futuro irão repensar cada palavra, cada pensamento do autor, e principalmente irão reconsiderar a problemática de um Estado Federativo do Brasil, o Amazonas, um lugar que deveria ser de pura maravilha, mas que se encontra atualmente maculado por alguns interesses internacionais que não se coadunam com os muitos interesses nacionais de preservação do meio-ambiente (em detrimento de uma rica minoria de brasileiros exploradores). E isto tudo, se houver, no futuro, um lugar chamado Amazonas. Se houver, no futuro, um país chamado Brasil, e se entendermos que, no momento, aqui, uma parte dos habitantes ─ grupo pequeno, mas que se posiciona como poderoso ─ se esmera em prol de seu desaparecimento no vasto telão simulacrado do Mapa Mundi.

Contudo, para referir-me ao incomum texto narrativo de Rogel Samuel, o nomeei, no início destas linhas preliminares, como Ficção Pós-Moderna (historicamente) e como Pós-Modernista (esteticamente). Pós-Moderna porque se insere em uma nova era, posterior à Era Moderna (aquela que teve o seu início, na Europa, lá pelos meados do século XV, com o advento do Humanismo Renascentista). Pós-Moderno seria o nome que se convencionou chamar ao momento histórico, depois da cisão que se estabeleceu no mundo pós-capitalista, com a retomada de valores comunitários (de pequenos grupos, e de uma maneira diferente dos valores comunitários da Idade Média, entretanto, não deixará de ser uma retomada). Pós-Modernista porque se instaura a partir de uma cisão com a estética chamada Modernista, implantada no Mundo e no Brasil a partir dos anos iniciais (anos bélicos) do século XX.


(...)

domingo, 22 de abril de 2012

CELSO FURTADO: UMA INTERPRETAÇÃO DO BRASIL


CELSO FURTADO: UMA INTERPRETAÇÃO DO BRASIL

NEUZA MACHADO


Consciente de que poucos estudiosos-Internautas da História do Brasil – história referente à segunda fase do século XX – tiveram a oportunidade de parar suas vidas corridas para retomar o pensamento de Celso Furtado, permito-me publicar aqui um importante capítulo de seu livro Os Ares do Mundo, editado pela Paz e Terra.

Como estou a publicar capítulos esparsos do referido livro de Celso Furtado, convido aos meus leitores a adquirirem o livro impresso. O mais importante é ler o livro todo (livro editado pela primeira vez em 1991, não s’esqueçam da data), para que possam fazer uma avaliação correta do que aconteceu e acontece hoje no Brasil (desde o início do ano de 2003 até este ano de 2012).

Algumas conhecidas figuras políticas brasileiras e alguns intelectuais daquele momento aziago da Ditadura, inseridos nos textos de Celso Furtado – os muitos que foram exilados para outros países –, ainda continuam em evidência em nosso atual cenário político (como, por exemplo, o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso). Mas será que alguns deles mantiveram-se fiéis aos seus ideais ou será que mudaram de ideia ao retornarem ao Brasil?


UMA INTERPRETAÇÃO DO BRASIL

Celso Furtado

(Interpretação de Celso Furtado publicada em 1991: FURTADO, Celso. Os Ares do Mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991: 52 - 59)

Paralelamente ao debate do ILPES sobre a temática cepalina, que consistia em nova leitura dos textos “clássicos” à luz da experiência recente de perda de dinamismo das principais economias latino-americanas, um grupo mais restrito de brasileiros reunia-se à noite para intercambiar ideias sobre a situação específica do Brasil. Muita gente aparecia ocasionalmente – Paulo Freire, Francisco Oliveira, Estevam Strauss, Jader de Andrade, Cid Carvalho, Darcy Ribeiro, Thiago de Melo, Samuel Wainer, entre outros –, mas o núcleo permanente era reduzido. Participávamos dele Cantoni, Weffort, Cardoso e eu. Concordávamos todos em que o Brasil não fugia ao quadro geral da América Latina, mas não nos escapava que a explicação do que ocorrera entre nós tinha de ser buscada na realidade particular de nosso país. Que estaria acontecendo no Brasil? Esta a questão a ser respondida antes de tudo mais. Estávamos convencidos de que se tratava de um simples assalto ao poder, no estilo de um Pérez Jiménez, na Venezuela, ou de um Fulgencio Batista, em Cuba. Era fácil carregar as tintas a propósito da irresponsabilidade e imaturidade das esquerdas. Chegavam-me muitas cartas de amigos que me interpelavam sobre os fatos. Do professor Maurice Byé, de Paris, de Duddly Seers, que andava então pela África, de Werner Bear, que estava em Yale, de Albert Hirschman, de Princeton. Este último dizia-me em carta: “Esses eventos podem com demasia facilidade ser interpretados como a prova definitiva de que nunca houve uma chance real de que reformas viessem a ser introduzidas no Brasil, de que os que pensavam de outra forma eram incuravelmente ingênuos. Ora, eu creio que você concorda comigo em que essa interpretação é equivocada, a menos, evidentemente, que incluamos entre as inevitabilidades históricas os erros, as inépcias e crimes da esquerda”. E fazia um apelo para que eu escrevesse alguma coisa, pois muitos eram os perplexos em busca de uma luz.

Aproveitei um convite que viera de Londres, mais concretamente do Royal Institute of International Affairs (Chattam House), no quadro de uma conferência sobre “Obstáculos à mudança na América Latina”, para ordenar minha ideias sobre o que estava ocorrendo no Brasil*. [Nota 3 do livro: 53: Uma versão deste texto foi inserida, sob o título “Análise do caso do Brasil”, em Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966]. Não podia desejar um meio mais eficaz de comunicar-me com os amigos do mundo universitário. Comecei chamando a atenção para o fato de que não basta que o desenvolvimento se transforme na aspiração suprema de uma coletividade nacional para que, como objetivo político, venha a prevalecer sobre os interesses de classe e grupos dominantes.

Na tradição liberal, o desenvolvimento era visto como fruto da interação de fatores gerados dentro de uma sociedade, produto daquele instinto para a troca que Adam Smith pretendeu identificar nos homens de todas as épocas. A ideia de uma política ativa de desenvolvimento é fenômeno recente, subproduto dos esforços de estabilização anticíclica. Nas economias capitalistas maduras, a busca da estabilidade – as chamadas políticas de pleno emprego – levou naturalmente à formulação de políticas de desenvolvimento e produziu os instrumentos de regulação macroeconômica.

Esse tipo de política se aplica com êxito ali onde existe um sistema econômico apto a crescer, vale dizer, capaz de gerar seu próprio dinamismo. Não é este o caso da grande maioria dos atuais países subdesenvolvidos, cujo dinamismo depende essencialmente de fatores exógenos. Política de desenvolvimento, neste caso, seria criar as bases de um sistema econômico que, sendo apto a crescer, encerrasse um esforço de reconstrução de estruturas econômicas e sociais.

Fora de situações históricas muito especiais – a Revolução de Meiji, no Japão, a Revolução bolchevique, na Rússia –, dificilmente as classes dirigentes de um país se põem de acordo para transformar suas estruturas, nas quais se funda o seu próprio poder.

A industrialização brasileira, ocorrida a partir dos anos 30, deu-se sem modificações estruturais significativas, independentemente da existência de uma política de desenvolvimento. O ponto de partida foi a crise do sistema primário-exportador, crise que envolveu o Estado, porquanto este vinha intervindo amplamente na comercialização do principal produto de exportação, o café. Assegurando preços altos a esse produto, o governo estimulou a superprodução, agravando a crise gerada no plano internacional pelo crash financeiro de 1929.

Preso na engrenagem que ele mesmo havia criado, o governo brasileiro continuou comprando café e foi levado, por esse meio, no decurso de um decênio, a destruir o correspondente a três vezes o consumo mundial do produto, à época. Ao empenhar-se dessa forma na defesa dos interesses do café, portanto na preservação das estruturas existentes, o governo praticou uma política de defesa do nível da renda monetária. Ora, ao manter-se esse nível em condições de declínio da capacidade para importar, a política de favores ao setor cafeeiro resultou ser, em última instância, uma política de industrialização. Com a rápida desvalorização da moeda, subiam os preços das mercadorias importadas, criando-se condições favoráveis à produção interna. Dessa forma, entre 1929 3 1937, enquanto o volume físico das importações caía 23 por cento, a produção industrial crescia em 50 por cento.

A segunda fase da industrialização brasileira – o imediato pós-guerra – também foi marcada por uma política cambial concebida para a defesa dos interesses do café. Com o objetivo de sustentar os preços do produto – o governo dispunha de grandes estoques, acumulados nos anos de guerra, quando eram baixas as exportações –, praticou-se a sobrevalorização do cruzeiro, o que significava ignorar os interesses dos industriais, em particular porque na época a tarifa brasileira era específica, não acompanhando sequer a elevação dos preços internacionais. As consequências indiretas dessa medida foram as mais inesperadas. As importações aumentaram com rapidez, provocando o esgotamento das reservas de câmbio, o que deu início a um processo de endividamento externo a curto prazo. Preocupado acima de tudo com os preços do café, o governo preferiu à desvalorização cambial uma política de estrito controle das importações, a qual viria a favorecer o setor industrial. A preferência era dada às importações de insumos – a baixos preços –, com o objetivo de dificultar a entrada de produtos finais.

O que convém assinalar é que a industrialização brasileira foi menos o fruto de uma política deliberada e mais o resultado de pressões geradas no sistema produtivo pela conjuntura internacional durante os anos de depressão e de guerra e pela ação do governo na defesa dos interesses do principal produto de exportação.

Contudo, essa industrialização trouxe significativas modificações às estruturas sociais do país. Até 1930, três quartas partes da população brasileira viviam no campo, onde prevalecia a combinação do latifúndio com o minifúndio. Pouco mais de um por cento da população tinha participação efetiva no processo político. As autoridades locais, mesmo quando integradas no governo federal, estavam sob a tutela dos grandes senhores proprietários de terras. O Estado, como organização política nacional, tinha uma escassa significação para a massa da população. O Brasil era uma república oligárquica de base latifundiária.

À margem dessa sociedade essencialmente estável, surgiu como fator de instabilidade uma população urbana ocupada em atividades ligadas ao comércio exterior, ao próprio Estado e a serviços em geral. Essa população, que desfrutava do mais amplo acesso à informação, consumidora em escala maior de bens importados, sente mais diretamente os altos e baixos da política cambial. Sempre que baixam os preços dos produtos exportados nos mercados internacionais, desvaloriza-se a moeda e se transfere para os importadores o essencial da perda de renda real.

Com o declínio relativo das importações a partir de 1930, e a concomitante expansão da atividade industrial e das funções do Estado, intensificou-se o processo de urbanização. Em 1920, viviam nas zonas urbanas 7 milhões de pessoas. Quatro decênios depois, esse número já alcançava 35 milhões, subindo a proporção de 20 para 50 por cento. Como na população urbana é maior a parcela alfabetizada – e apenas os alfabetizados participavam do processo eleitoral –, a atividade política sofreu importante modificação durante esse período, deslocando-se seu centro de gravidade do mundo rural para o urbano.

À diferença do padrão clássico do desenvolvimento capitalista, no Brasil a indústria cresceu (substituindo importações que se faziam inviáveis) sem conflitar com a agricultura. Numa primeira fase, as atividades industriais foram em boa parte fruto da iniciativa de imigrantes de primeira ou segunda geração, que se mantinham isolados da atividade política, reserva de caça da velha oligarquia rural e seus prepostos. A partir da crise de 1929, em razão da queda de rentabilidade da agricultura tradicional de exportação, os investimentos se orientaram de preferência para as atividades manufatureiras. Deu-se assim uma aproximação dos interesses agrícola-exportador e industrial, o que explica a pouca resistência dos cafeicultores às transferências de renda em favor do setor industrial provocadas pela política cambial. Daí que as importantes modificações sociais, que acompanharam a industrialização e a urbanização, não se hajam refletido de forma significativa nas estruturas políticas.

As circunstâncias em que se desenvolveu o movimento operário também contribuíram para a lenta diferenciação das lideranças industriais. A forte contribuição de contingentes europeus na formação inicial da classe operária em São Paulo concorreu para que se estabelecesse um nível de salário real relativamente elevado, o que se faria evidente à medida que o desenvolvimento das comunicações provocasse a unificação do mercado de trabalho. Em condições de oferta totalmente elástica de mão-de-obra e de salários reais relativamente elevados – com respeito aos praticados nas zonas rurais de colonização mais antiga –, a classe operária assumiu precocemente atitudes moderadas, o que facilitou a tutela das organizações sindicais pelo Estado. Na ausência de antagonismos conscientes entre trabalhadores e classe patronal, os empresários industriais se habituaram a um clima social não muito distinto do que prevalecia no setor agrícola.

À falta de uma classe industrial com identidade definida deve-se em boa medida o atraso na modernização do quadro político brasileiro. As constituições políticas representaram poderoso instrumento nas mãos da velha oligarquia de base rural para preservar sua posição como principal força política. O sistema federativo, ao atribuir importantes funções ao Senado, onde os pequenos estados agrícolas localizados nas regiões mais atrasadas têm um peso considerável, coloca o Poder Legislativo sob influência decisiva dos interesses mais retrógrados. Demais, na Câmara dos deputados a representação era proporcional (pela Constituição de 1946) à população de cada estado. Maior o número de analfabetos, maior valor tinha o voto da minoria que participava do sufrágio. Como é nas regiões com mais analfabetos que a velha oligarquia tem mais peso, o sistema eleitoral contribuiu para manter o predomínio oligárquico.

Mas o controle dos centros principais de poder não basta para que a autoridade daí resultante seja aceita como legítima pela maioria da população. É exatamente ao declínio dessa legitimidade que cabe atribuir a baixa de eficácia do poder exercido pela classe que controla o Estado.

As modificações na estrutura social trazidas pela urbanização conduziriam inevitavelmente à predominância do eleitorado urbano. Essa predominância manifestou-se claramente nas eleições majoritárias – para presidente da República e para os cargos de governador nos estados mais urbanizados.

Dessa forma, criaram-se condições para que o Poder Executivo viesse a representar as forças que desafiam as oligarquias tradicionalistas, estas concentradas no Congresso. As tensões entre os dois centros de poder político tenderiam, em consequência, a agravar-se.

Para identificar as forças que vinham desafiando a estrutura tradicional de poder, convém observar mais de perto a natureza do processo de urbanização. Este teve na industrialização apenas um de seus fatores formativos. Não se tratou da urbanização de tipo clássico, caracterizada por forte crescimento do emprego nas manufaturas. No período 1950-1960, a massa trabalhadora agrícola ainda cresceu em 4,5 milhões de pessoas, enquanto as manufaturas criavam apenas 436 mil novos empregos. Contudo, a taxa de crescimento da população urbana foi praticamente o dobro da de aumento da população rural. A urbanização brasileira tem sido principalmente fruto da explosão do terciário, à qual não é estranho o processo de concentração da renda – o excedente rural é principalmente dispendido nas cidades –, de crescimento do setor público e de aumento do salário invisível auferido nas cidades graças aos melhores serviços e às economias de aglomeração.

Enquanto o emprego nas manufaturas cresceu à taxa anual de 3 por cento, a população urbana se expandiu com uma taxa de 6 por cento. As massas que se foram aglomerando nas cidades acomodaram-se em um terciário de baixa produtividade que se prolonga no subemprego e numa cultura da pobreza característica das grandes aglomerações urbanas brasileiras.

Essa população urbana, sem estrutura definida que lhe assegure alguma estabilidade e sem consciência social que não seja o sentimento de exclusão, veio a representar o novo fator decisivo nas lutas políticas brasileiras. O processo de massificação daí resultante está na origem do populismo político que caracterizaria as lutas pelo poder nos decênios recentes.

Essas circunstâncias explicam que o princípio da legitimidade do poder haja tropeçado em dificuldades crescentes. Para legitimar-se, o governo deve operar dentro de normas constitucionais, mas, para corresponder às expectativas da grande maioria que o elegeu pelo voto, o presidente da República deve visar objetivos que conflitam com as posições das forças que dominam o Congresso. Os dois princípios de legitimação da autoridade – o enquadramento nas normas constitucionais e a lealdade no cumprimento do mandato substantivo vindo diretamente da vontade popular – entram em conflito, colocando o presidente em face da disjuntiva de ter que trair o seu mandato ou forçar uma saída não convencional. Explica-se, dizia eu num esforço de síntese, que no correr de um período de dez anos um presidente haja apelado para o suicídio, outro tenha renunciado e um terceiro, sofrido a deposição pela força.

O pacto direto com a massa tem constituído, no período do pós-guerra, condição necessária para alcançar o Poder Executivo no Brasil. O candidato que se limita a apresentar um programa “realista” – sempre interpretado como visando à manutenção do status quo – será facilmente superado por outros audaciosos. Ora, a heterogeneidade da massa dos votantes exige dos líderes populistas compromissos com objetivos nem sempre conciliáveis. Por outro lado, maior a sua audácia, maior a suspeita que desperta que desperta na classe dirigente tradicional. Assim, entre ambiguidade suspeita arma-se a arena política em que se dá o jogo populista.

O conflito entre as massas urbanas, de estruturas fluidas e com líderes populistas, e o velho sistema de poder que controla o Estado permeia todo o processo político do Brasil atual. Os líderes populistas falam de modernizar o país através de “reformas de base”, “modificações estruturais”. A classe dominante tradicional utiliza habilmente a pressão populista como espantalho para submeter a seu controle os novos grupos de interesses patrimoniais surgidos com a industrialização e ocasionalmente amedrontar os seguimentos sociais médios, principais beneficiários da industrialização.

A existência de um conflito que põe em xeque o próprio funcionamento das instituições em que se apóia o poder político criou condições propícias à arbitragem militar, o que explica a facilidade com que esta se efetivou. Sem eliminar as causas do conflito, essa arbitragem promove meios para a superação do impasse. Ela tanto pode vir para consolidar a estrutura tradicional de poder, submetendo as massas a um processo de adormecimento, como para forçar mudanças nas estruturas tradicionais. Esta segunda hipótese abre espaço para um populismo militar, o qual assusta, mais que qualquer outra coisa, as classes dirigentes tradicionais e conduz necessariamente a outra forma de instabilidade. O mais provável, entretanto, é que a arbitragem militar seja apresentada, mediante manipulação da opinião pública, como encarnação do interesse nacional, retorno à estabilidade e preservação da “ordem”.

Cabe indagar: um sistema de poder que expressa as aspirações das classes dirigentes tradicionais terá meios de formular e executar uma política de desenvolvimento num país em que desenvolvimento significa necessariamente mudanças sociais? Se a resposta é negativa, não estaremos caminhando para um novo impasse, agravado agora por maior frustração das massas excluídas? A inevitável nova ruptura que se prepara não se tornará ainda mais severa com o prolongamento do novo impasse? A experiência política brasileira futura deverá esclarecer essas questões, dizia eu, concluindo essa primeira análise do processo histórico que se abrira com o golpe militar de 1964.

terça-feira, 17 de abril de 2012

O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE: SOBRE A OBRA FICCIONAL O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL


O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE: SOBRE A OBRA FICCIONAL O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL

NEUZA MACHADO

(Trecho do livro O Fogo da Labareda da Serpente)

“Capítulo 5 - CINCO: FERREIRA: Por enquanto, o Ribamar, mergulhando no igarapé e enfrentando os obstáculos da correnteza, imerge no prosseguimento do sonho de seu criador ficcional para chegar ao Palácio Manixi e se transformar em secretário da esposa de Pierre Bataillon, D. Ifigênia Vellarde (“─ E onde está Ribamar? ─ ouço a voz de D. Ifigênia que me procura. Fecho a porta e sigo para atendê-la. Durante a noite estou de serviço.”). Em verdade, quem bate “em paus e pedras”, quem procura prosseguir “noite a dentro, extasiado e sem pensar, como se tudo aquilo fosse a [continuação de] um sonho”, é o narrador pós-moderno. Entretanto, não haverá explicações racionais, pois o primeiro narrador, narrador do segundo, “não viu mais o fogo da labareda da serpente”, ou seja, da labareda conceitual e mítica que impõe regras discursivas lineares (o já conceitualmente familiar). O primeiro narrador, temporariamente, terá de visualizar um fogo mítico, que proporcione ao seu senhor, o narrador principal, uma espécie de interrupção provisória, e este segundo, por sua vez, terá de harmonizar-se ao verdadeiro proprietário do regulamento narrativo pós-moderno-pós-modernista de Segunda Geração, o criador ficcional, buscando um momento de descanso (um momento de sonho ativado), para que, páginas adiante, ele possa pôr em evidência a ilimitação de seu interior férvido (para, com isto, apresentar o poder feminino e masculino, naturais, o poder das míticas amazonas guerreiras). No momento, na página trinta e seis do romance, quem sonha “na noite velada e muito burra e muito cega”, reafirmo, é o criador ficcional do final do século XX, impossibilitado de narrar os acontecimentos relativos ao mergulho no invólucro onírico aquático de sua consciência singular. Assim, dando prosseguimento às ordens privativas de sua “meia-noite psíquica, onde germinam virtudes de origem” (Bachelard), quem assume a interrupção narrativa transitória é o primeiro narrador, representante das formas exemplares do bem narrar, o Ribamar de Sousa”.

(MACHADO, Neuza. O Fogo da Labareda da Serpente – Sobre O Amante das Amazonas de Rogel Samuel)

Convido aos meus Leitores-Internautas (e aos estudiosos em geral da literatura brasileira dos anos finais do século XX – literatura esta que eu particularmente computo como Pós-Moderna/Pós-Modernista de Segunda Geração) a lerem o meu exercício crítico-fenomenológico, sobre a obra ficcional O Amante das Amazonas, do escritor amazonense Rogel Samuel, exercício crítico este intitulado O Fogo da Labareda da Serpente.

O meu estudo teórico-crítico-fenomenológico – O Fogo da Labareda da Serpente – poderá ser lido em:
portalentretextos.com.br/webroot/files/prt_livrosonline/o-fogo-da-labareda-da-serpente.pdf


O romance O Amante das Amazonas, para os que desejarem ler esta singularíssima obra do escritor Rogel Samuel (um romance da pós-modernidade que, diga-se de passagem, deverá ser lido em primeiro lugar, para que, posteriormente, o meu exercício crítico-fenomenológico possa tornar possível a compreensão do leitor), se encontra disponibilizado em:
historiadosamantes.blogspot.com/2009/04/0-amante-das-amazonas.html


Um grande abraço aos meus Leitores-Internautas, agradecendo-lhes sempre as suas preciosas visitas e as muitas demonstrações de apreço recebidas através de carinhosos e-mails.

Muito obrigada a todos!


sábado, 14 de abril de 2012

CELSO FURTADO: QUE RUMO TOMAR?


CELSO FURTADO: QUE RUMO TOMAR?

NEUZA MACHADO

Para os leitores deste meu blog que se interessarem em compreender as sábias reflexões de Celso Furtado, editadas em 1991 (ATENÇÃO: leiam o capítulo sempre se conscientizando de que o livro de Celso Furtado foi editado pela primeira vez em 1991), publico aqui o capítulo inicial do livro Os Ares do Mundo, denominado “Que rumo tomar?”, pedindo-lhes que, a partir da leitura consciente que fizerem, possam refletir sobre os atuais acontecimentos sócio-políticos que incomodam a maior parte dos brasileiros, os quais já possuem conhecimento do que aconteceu no passado e o que agora acontece no Brasil.


QUE RUMO TOMAR?

Celso Furtado


Haviam decorrido quinze anos desde que em 1949 se iniciara a experiência da CEPAL, caso único de escola de pensamento surgida em terras latino-americanas. Santiago se transformara, desde então, em importante centro de atividade intelectual, especialmente no campo dos estudos sociais aplicados. Além da própria CEPAL e seu adjunto Instituto Latino-Americano de Planejamento Econômico e Social (ILPES), estavam presentes nessa cidade um aguerrido grupo de pensadores jesuítas e um não menos ativo núcleo de economistas neoliberais que se tornariam conhecidos como os Chicago-boys. Prevalecia em todos esses grupos, que competiam no plano doutrinário, o sentimento de que o que viesse a ocorrer na América Latina dependeria de alguma forma do que ali se discutia.

Quiçá ninguém tivesse dos acontecimentos em curso uma visão tão lúcida como o sociólogo espanhol José Medina Echevarría, meu velho companheiro dos primórdios da CEPAL, quando ainda tínhamos perto de nós essa outra guinada da História que foi a Guerra Civil Espanhola. Para José Medina, o que estava ocorrendo em Cuba teria profundas consequências na América Latina, pois estava conduzindo a uma radicalização de esquerda e de direita que seria de efeitos nefastos.

A nenhum de nós escapara que se produzira um tournant na América Latina a partir do incidente dos mísseis soviéticos instalados a poucos quilômetros da Flórida, do fracasso do projeto de Kennedy da Aliança para o Progresso e da consolidação da Revolução Cubana.

O Chile se constituíra em polo de atração da primeira vaga da diáspora brasileira após o golpe militar de 1964. muitos brasileiros se haviam refugiado em embaixadas ou haviam cruzado a fronteira do Uruguai sem documentos, e agora começavam a afluir a Santiago. A referência principal na cidade era o poeta Thiago de Melo, que ocupava o cargo de assessor cultural na Embaixada do Brasil e habitava uma bela mansão de propriedade de Pablo Neruda, situada na encosta do morro de São Cristóvão, bem no centro da cidade. Thiago dedicava todo o seu tempo a receber refugiados brasileiros e a pô-los em contacto com personalidades chilenas que pudessem ser-lhes de alguma utilidade. Ele gozava de extraordinário prestígio no mundo cultural chileno e suas múltiplas relações foram de grande valia para muitos dos que aportavam sem maiores conexões locais. Essa situação ambígua não se prolongou por muito tempo, mas, enquanto durou, Thiago colocou os meios de que dispunha a serviço dos compatriotas que chegavam fugindo do terror instalado no Brasil, onde presos políticos já se contavam por milhares.

Neruda participava ocasionalmente dos encontros dos refugiados brasileiros na mansão do morro de São Cristóvão. Ele parecia estar sempre em posição de defesa, guardando-se contra toda improvisação como se em nenhum momento desencarnasse do papel de membro da direção do PC chileno. Para mim, ele fora sempre uma esfinge. Perguntava-me como era possível que o poeta da “Canção Desesperada” se extasiasse diante dos efeitos do carrasco Vichinsky. Sua alma parecia-me dotada de compartimentos estanques. De um lado da parede de vidro, situava-se o cantor das alturas de Machu Picchu e das Odes Elementares; do outro, o versejador partidário, desprovido de espírito crítico. Alguém perguntou-me em certo momento o que eu pretendia fazer com as medalhas condecorativas de que vinha de ser destituído pelo governo militar brasileiro. Respondi que iria pô-las no lixo, com exceção das que ganhara como membro da Força Expedicionária Brasileira. Neruda mostrou-se surpreso e aconselhou-me a ser paciente e a dar tempo aos militares para que voltassem à razão.

Darcy Ribeiro, que se fixara em Montevidéu, passou por Santiago em direção à Europa. Era dos que consideravam que os militares do Brasil não tinham base de sustentação na sociedade e, por isso, não se manteriam no poder por mais de seis meses. Em reunião na casa de Thiago, trocamos impressões sobre o assunto, alguns aproveitando a deixa para dizer o que esperavam do futuro. Samuel Wainer era dos que contavam reassumir posições de luta no Brasil a curto prazo. Foram muitos os que ficaram perplexos quando eu disse supor que meu exílio seria longo, e que estava fazendo planos para viver no estrangeiro em torno de quinze anos. Diante da incredulidade geral, expliquei-me: “esse golpe não foi improvisado. Por trás dele estão dez anos de conspiração. Começou quando acurralaram Getúlio e o levaram ao suicídio. No Brasil, todo processo de mudança político-social é lento. Se os golpistas, que dispunham de amplos meios de ação, inclusive ajuda externa, necessitaram de dez anos para tomar o poder, como imaginar que em prazo menor reverteremos a situação? Não digo que nada há a fazer. Cabe a cada um de nós”, adiantava eu, “fazer o melhor que possa no seu setor, mas não vejo possibilidade de que a situação se reverta senão a longo prazo. O que importa é que aqueles dentre nós que, em dez anos ou vinte anos, regressem não cometam uma vez mais os erros que facilitaram o trabalho dos golpistas”.

Tivera uma conversa dessa natureza no Rio, quando me despedi de alguns companheiros de trabalho que estavam indecisos sobre o rumo a tomar. “Sempre que possível”, dissera eu, “devemos resistir nos lugares que ocupamos, pois o golpe não foi improvisado e a reversão tomará tempo.” Lembro-me de que Nailton Santos, que dirigira o setor de Recursos Humanos da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), entrou em profunda tristeza quando me ouviu. Ele estava com prisão decretada e não lhe restava senão evitar o pior, saindo do país. “Se o que você diz é verdade – arguiu – temos de reconhecer a falência de nossa geração.” De alguma forma, eu partia do pressuposto dessa falência. Tinha dúvida, apenas, sobre a profundidade do dano que faria ao Brasil uma ditadura militar que se prolongasse por um decênio ou mais.

Todos percebíamos que algo de “novo” estava ocorrendo no Brasil. Era evidente que as motivações dos que se haviam apossado do poder nada tinha a ver com o idealismo raso e inconsistente dos “tenentes”, que haviam vacilado entre a direita e a esquerda. Estávamos agora diante de um projeto “modernizador”, que partia da ideia de que, tanto a distribuição equitativa da renda como a convivência democrática, somente são alcançadas nas fases superiores do desenvolvimento. Assim, havia antes que conhecer as dores do parto da “acumulação primitiva”. Para essa gente, o desenvolvimento é um processo de domesticação da sociedade, requer o exercício de um poder autoritário. Enfim, era a vitória da doutrina da modernização tutelada. As pessoas que pensam assim são alérgicas ao debate aberto; sem que o percebam pensam em revólver quando ouvem falar de intelectual.

Nossos debates, agora, se realizavam de preferência no edifício da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), onde eu trabalhava na preparação de um seminário sobre os primórdios dessa instituição. Com frequência saíamos para perambular pelas margens do rio Mapocho. Havia sempre novos participantes em nossas reuniões. Alguns vinham para respirar, sufocados pelo clima de repressão criado no Brasil, mas logo se impacientavam e preparavam o regresso. Outros haviam escapado à perseguição e exploravam a possibilidade de encontrar um abrigo. Em verdade, a quase totalidade partia do princípio de que “a coisa em breve melhorará”, viabilizando o regresso. Fernando Henrique Cardoso insistia em que era necessário encontrar ou abrir espaço para a luta dentro do Brasil. Alguma forma de intelligentsia independente teria de sobreviver, se desejávamos evitar que o obscurantismo aprofundasse as suas raízes. Não nos escapava que os novos donos do poder tudo fariam para cooptar essa intelligentsia, dificultando o mais possível a sobrevivência dos renitentes. A tentativa de Fernando Henrique Cardoso de voltar à universidade, de onde seria finalmente expelido, e a posterior criação do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) inscrevem-se nessa linha. Eu não desaprovava, mas sentia que não seria este o meu caminho. Minha opinião era que deveríamos instalar no exterior antenas captadoras e transmissoras, a fim de alimentar de ideias as redes de trabalho intelectual independente que lograssem sobreviver no país. Lembrava-me dos versos de Juan Ramón Jimenez, coração, cabeça, nos ares do mundo.

Sentia-me que mais uma vez viria a prevalecer em mim a vontade de andar sozinho, de vagabundar como um lobo solitário. Respeitava aqueles que se organizavam para sobreviver e pensar com independência no Brasil. Mas também sabia o importante que era observar de perto o que se passava no vasto mundo, sem o que tenderíamos a cair no isolamento e a correr o risco de ficar prisioneiros de uma visão exterior concebida para reforçar nossa dependência. Era necessário acompanhar de perto o que se passava nos Estados Unidos, em cujo campo gravitacional estávamos inseridos. Isso sem desconhecer que também era necessário manter contactos em várias áreas da América Latina e, no possível, instituir mecanismos de ajuda mútua.

(FURTADO, Celso. Os Ares do Mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991: 19 - 23)

sábado, 7 de abril de 2012

CELSO FURTADO: INTRODUÇÃO AO LIVRO OS ARES DO MUNDO


CELSO FURTADO: INTRODUÇÃO AO LIVRO OS ARES DO MUNDO

NEUZA MACHADO

A Introdução do livro Os Ares do Mundo, de Celso Furtado, foi escrita em dezembro de 1990. Já se passaram vinte e um anos, a partir da primeira edição, e os pensamentos do autor ainda vêm a propósito.

Neste momento, meses iniciais do ano de 2012, os brasileiros conscientemente politizados se percebem como testemunhas históricas de um escândalo político que afeta as bases da direita brasileira, mas não deixando esse dito escândalo de respingar também gotículas vergonhosas em alguns politiqueiros da chamada esquerda brasileira (o escândalo que se denominou em 2011 “Privataria Tucana”), percebo que seria de muita utilidade aos jovens estudiosos da História do Brasil, dos anos sessenta para cá, um envolvimento reflexivo com os pensamentos de Celso Furtado sobre os problemas que se cristalizaram no Brasil da ditadura e da pós-ditadura. Tais problemas, decorrentes da submissão de nossos políticos, militares, historiadores e pensadores, foram denominados com muita precisão (pelo mesmo Celso Furtado) de “colonialismo mental”, um fatídico colonialismo que, infelizmente, ainda hoje, está difícil de ser extirpado das salas de aula das Escolas iniciais e secundárias e, principalmente, das Instituições de Ensino Superior .

Na impossibilidade de apresentar-lhes o todo do conteúdo do livro, transcrevo aqui apenas a Introdução, com a plena certeza de que os que lerem este instigante texto buscarão adquirir o referido livro de Celso Furtado (seja novo ou já manuseado), para que possam entender, os jovens de hoje, mais um pouquinho da grave e problemática politicagem subalterna que ainda persiste no Brasil. Infelizmente, tal politicagem persiste, mesmo com a sociedade brasileira constatando gradativamente o grande avanço sócio-econômico dos anos finais do Governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva e agora culminando satisfatoriamente pelas mãos firmes da Presidenta Dilma Vanna Rousseff (administração econômica bem sucedida e jamais imaginada nos governos de direita que os antecederam).

Para os leitores deste meu blog que se interessarem em compreender as sábias reflexões de Celso Furtado, editadas em 1991, publico aqui a Introdução do livro Os Ares do Mundo, pedindo-lhes que, a partir da leitura consciente que fizerem, possam refletir sobre os atuais acontecimentos sócio-políticos que incomodam a maior parte dos brasileiros, os quais já possuem conhecimento do que aconteceu no passado e o que agora acontece no Brasil.


INTRODUÇÃO AO LIVRO OS ARES DO MUNDO

Celso Furtado

(FURTADO, Celso. Os Ares do Mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991)


Na linha de minhas duas Fantasias,* o presente volume reúne textos que se relacionam com experiências pessoais e reproduzem reflexões sobre a problemática desenvolvimento-subdesenvolvimento, a cujo estudo dediquei o essencial de minha atividade intelectual. Textos há que se situam em sua integralidade em um ou outro desses dois polos, mas a intenção predominante foi abarcar sempre as duas vertentes.

A parte I se refere ao período que se seguiu ao golpe de Estado de 1964. A saída para o Chile deu-me oportunidade de retomar de imediato a atividade intelectual no âmbito da América Latina. Mas minha experiência recente no Brasil convencera-me de que o de que mais necessitávamos era uma melhor compreensão das transformações que estavam ocorrendo nos Estados Unidos, dado que esse país assumira na plenitude o papel de centro mundial do poder. A força gravitacional que exerce esse centro sobre os países latino-americanos crescera tanto, que se tornara impraticável captar o sentido do que nestes ocorria se não dispuséssemos de hipóteses com respeito ao comportamento do sistema de poder norte-americano. Este ganhara tal complexidade – suas ramificações abrangiam muito mais do que as instituições políticas – que de quase nenhum alcance para compreende-lo eram os conhecimentos tradicionais de teoria do Estado. As velhas ideias sobre imperialismo, fundadas nas rivalidades entre Estados nacionais manipulados por interesses econômicos, eram de pouca valia para entender a ação transnacional das grandes empresas que entrelaçam os circuitos econômicos e financeiros nacionais. Daí que a Parte II seja uma incursão no vasto processo histórico que produziu a especificidade norte-americana – primeira economia a se planetarizar. O projeto original era tratar exaustivamente o fenômeno norte-americano, visando a contribuir para que nos países latino-americanos se criem institutos de pesquisas e cursos universitários dedicados a seu estudo. As circunstâncias, conforme se verá, levaram-me a modificar esse projeto e antecipar o meu traslado para a Europa. Contudo, considerei conveniente incluir no texto o essencial do material preparado no quadro dessa pesquisa.

Na segunda metade de 1965 inicio minhas atividades universitárias em Paris. A energia com que de Gaulle acabava de liquidar os restos do colonialismo francês e enfrentava o hegemonismo norte-americano abrira à França um espaço na arena internacional que ela se apressava em ocupar. Paris se transformara no polo de atração de todos os movimentos de liberação ou de contestação da vasta e heterogênea área que começava a ser referida como Terceiro Mundo. Sem lugar à dúvida, vivíamos um desses períodos excepcionais da História em que as utopias desempenham um papel de relevo no desenho do destino dos povos. Uma mensagem política emitida em Paris, nessa época, obtinha facilmente grande repercussão. Os livros aí publicados eram rapidamente difundidos em vastas áreas do mundo. Logo percebi que era importante repensar as estruturas de poder em sua nova configuração mundial e escapar aos chavões das doutrinas recebidas do século XIX; mas não menos urgente era fazer com que as ideias renovadoras se difundissem eficazmente. Com o passar do tempo, dera-me conta de que a fraqueza maior do Terceiro Mundo estava no plano das ideias: éramos colonizados mentalmente, por um lado, e por outro permanecíamos prisioneiros de velhas doutrinas “revolucionárias” que haviam passado de moda nos centros metropolitanos. A esses anos de febril atividade intelectual e de buscas de novas pistas refere-se a Parte III, anos em que se agudiza no Brasil a reação contra o pensamento crítico independente. Também estão aí reunidas observações que tive oportunidade de fazer em países que lutavam para liberar-se dos grilhões do subdesenvolvimento, e o registro de minha participação em debates ocorridos na época em que foi maior a esperança de reconstrução da ordem econômica mundial. Esses textos estão datados quando reproduzidos em sua forma original.

As lutas sociais do século XX são caudatárias de ideologias concebidas nos dois séculos anteriores, particularmente no XIX. Em torno desse tema elaborei um ensaio que se destinava a fundamentar uma investigação sobre as experiências contemporâneas de reconstrução voluntarista das estruturas sociais. Esse ensaio teórico abre a Parte IV, dedicado ao que chamei de “experiências de engenharia social”. As observações que fiz em alguns países que se empenhavam em reconstruir suas estruturas sociais são apresentadas na forma original, com as datas respectivas. Por todas as partes, pude comprovar que a um período inicial de entusiasmo seguia-se a frouxidão, e mesmo a esclerose, sendo mínima a participação da cidadania na gestão da coisa pública e no controle dos que exercem o poder.

Minha longa vivência das atribulações dos países que ficaram presos na armadilha do subdesenvolvimento levou-me à convicção de que o esforço requerido para daí escapar é de tal monta, que somente a formação de um amplo consenso nacional poderá fazê-lo viável. Ora, um consenso dessa ordem dificilmente pode emergir e perdurar em uma sociedade altamente estratificada e na qual os grupos dominantes possuem poderosos aliados externos. Por outro lado, a imposição a imposição de mudanças estruturais por uma minoria, qualquer que seja sua orientação ideológica, tende a engendrar uma burocratização das engrenagens do sistema de poder de difícil reversibilidade. Os casos em que circunstâncias externas forçaram e tornaram possível a modernização das estruturas sociais são exceções que confirmam a regra.

Somente uma sociedade aberta – democrática e pluralista – é apta para um verdadeiro desenvolvimento social. Mas como desconhecer que nos países do Terceiro Mundo – dadas as condições atuais de entrosamento internacional dos sistemas produtivos e dos circuitos financeiros – as estruturas de privilégios praticamente são irremovíveis? Empiricamente se comprova que nos países ricos a sociedade é cada vez mais homogênea, no que respeita às condições básicas de vida, e no mundo subdesenvolvido ela é cada vez mais heterogênea. Não surpreende, portanto, que esta época de grande enriquecimento da humanidade seja também de agravação da miséria de uma ampla maioria.

O avanço político, que é o mais difícil e importante de todos que logra o homem, faz-se aprendendo a administrar conflitos. Daí que só as sociedades democráticas o realizem com segurança. Trata-se de manter a sociedade aberta, num mundo de crescente interdependência, preservando e exercendo a capacidade de autogoverno. É um problema com mais incógnitas do que equações. Mas será que existe solução para todos os problemas que envolvem o destino dos homens?

Paris, dezembro de 1990