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sábado, 14 de abril de 2012

CELSO FURTADO: QUE RUMO TOMAR?


CELSO FURTADO: QUE RUMO TOMAR?

NEUZA MACHADO

Para os leitores deste meu blog que se interessarem em compreender as sábias reflexões de Celso Furtado, editadas em 1991 (ATENÇÃO: leiam o capítulo sempre se conscientizando de que o livro de Celso Furtado foi editado pela primeira vez em 1991), publico aqui o capítulo inicial do livro Os Ares do Mundo, denominado “Que rumo tomar?”, pedindo-lhes que, a partir da leitura consciente que fizerem, possam refletir sobre os atuais acontecimentos sócio-políticos que incomodam a maior parte dos brasileiros, os quais já possuem conhecimento do que aconteceu no passado e o que agora acontece no Brasil.


QUE RUMO TOMAR?

Celso Furtado


Haviam decorrido quinze anos desde que em 1949 se iniciara a experiência da CEPAL, caso único de escola de pensamento surgida em terras latino-americanas. Santiago se transformara, desde então, em importante centro de atividade intelectual, especialmente no campo dos estudos sociais aplicados. Além da própria CEPAL e seu adjunto Instituto Latino-Americano de Planejamento Econômico e Social (ILPES), estavam presentes nessa cidade um aguerrido grupo de pensadores jesuítas e um não menos ativo núcleo de economistas neoliberais que se tornariam conhecidos como os Chicago-boys. Prevalecia em todos esses grupos, que competiam no plano doutrinário, o sentimento de que o que viesse a ocorrer na América Latina dependeria de alguma forma do que ali se discutia.

Quiçá ninguém tivesse dos acontecimentos em curso uma visão tão lúcida como o sociólogo espanhol José Medina Echevarría, meu velho companheiro dos primórdios da CEPAL, quando ainda tínhamos perto de nós essa outra guinada da História que foi a Guerra Civil Espanhola. Para José Medina, o que estava ocorrendo em Cuba teria profundas consequências na América Latina, pois estava conduzindo a uma radicalização de esquerda e de direita que seria de efeitos nefastos.

A nenhum de nós escapara que se produzira um tournant na América Latina a partir do incidente dos mísseis soviéticos instalados a poucos quilômetros da Flórida, do fracasso do projeto de Kennedy da Aliança para o Progresso e da consolidação da Revolução Cubana.

O Chile se constituíra em polo de atração da primeira vaga da diáspora brasileira após o golpe militar de 1964. muitos brasileiros se haviam refugiado em embaixadas ou haviam cruzado a fronteira do Uruguai sem documentos, e agora começavam a afluir a Santiago. A referência principal na cidade era o poeta Thiago de Melo, que ocupava o cargo de assessor cultural na Embaixada do Brasil e habitava uma bela mansão de propriedade de Pablo Neruda, situada na encosta do morro de São Cristóvão, bem no centro da cidade. Thiago dedicava todo o seu tempo a receber refugiados brasileiros e a pô-los em contacto com personalidades chilenas que pudessem ser-lhes de alguma utilidade. Ele gozava de extraordinário prestígio no mundo cultural chileno e suas múltiplas relações foram de grande valia para muitos dos que aportavam sem maiores conexões locais. Essa situação ambígua não se prolongou por muito tempo, mas, enquanto durou, Thiago colocou os meios de que dispunha a serviço dos compatriotas que chegavam fugindo do terror instalado no Brasil, onde presos políticos já se contavam por milhares.

Neruda participava ocasionalmente dos encontros dos refugiados brasileiros na mansão do morro de São Cristóvão. Ele parecia estar sempre em posição de defesa, guardando-se contra toda improvisação como se em nenhum momento desencarnasse do papel de membro da direção do PC chileno. Para mim, ele fora sempre uma esfinge. Perguntava-me como era possível que o poeta da “Canção Desesperada” se extasiasse diante dos efeitos do carrasco Vichinsky. Sua alma parecia-me dotada de compartimentos estanques. De um lado da parede de vidro, situava-se o cantor das alturas de Machu Picchu e das Odes Elementares; do outro, o versejador partidário, desprovido de espírito crítico. Alguém perguntou-me em certo momento o que eu pretendia fazer com as medalhas condecorativas de que vinha de ser destituído pelo governo militar brasileiro. Respondi que iria pô-las no lixo, com exceção das que ganhara como membro da Força Expedicionária Brasileira. Neruda mostrou-se surpreso e aconselhou-me a ser paciente e a dar tempo aos militares para que voltassem à razão.

Darcy Ribeiro, que se fixara em Montevidéu, passou por Santiago em direção à Europa. Era dos que consideravam que os militares do Brasil não tinham base de sustentação na sociedade e, por isso, não se manteriam no poder por mais de seis meses. Em reunião na casa de Thiago, trocamos impressões sobre o assunto, alguns aproveitando a deixa para dizer o que esperavam do futuro. Samuel Wainer era dos que contavam reassumir posições de luta no Brasil a curto prazo. Foram muitos os que ficaram perplexos quando eu disse supor que meu exílio seria longo, e que estava fazendo planos para viver no estrangeiro em torno de quinze anos. Diante da incredulidade geral, expliquei-me: “esse golpe não foi improvisado. Por trás dele estão dez anos de conspiração. Começou quando acurralaram Getúlio e o levaram ao suicídio. No Brasil, todo processo de mudança político-social é lento. Se os golpistas, que dispunham de amplos meios de ação, inclusive ajuda externa, necessitaram de dez anos para tomar o poder, como imaginar que em prazo menor reverteremos a situação? Não digo que nada há a fazer. Cabe a cada um de nós”, adiantava eu, “fazer o melhor que possa no seu setor, mas não vejo possibilidade de que a situação se reverta senão a longo prazo. O que importa é que aqueles dentre nós que, em dez anos ou vinte anos, regressem não cometam uma vez mais os erros que facilitaram o trabalho dos golpistas”.

Tivera uma conversa dessa natureza no Rio, quando me despedi de alguns companheiros de trabalho que estavam indecisos sobre o rumo a tomar. “Sempre que possível”, dissera eu, “devemos resistir nos lugares que ocupamos, pois o golpe não foi improvisado e a reversão tomará tempo.” Lembro-me de que Nailton Santos, que dirigira o setor de Recursos Humanos da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), entrou em profunda tristeza quando me ouviu. Ele estava com prisão decretada e não lhe restava senão evitar o pior, saindo do país. “Se o que você diz é verdade – arguiu – temos de reconhecer a falência de nossa geração.” De alguma forma, eu partia do pressuposto dessa falência. Tinha dúvida, apenas, sobre a profundidade do dano que faria ao Brasil uma ditadura militar que se prolongasse por um decênio ou mais.

Todos percebíamos que algo de “novo” estava ocorrendo no Brasil. Era evidente que as motivações dos que se haviam apossado do poder nada tinha a ver com o idealismo raso e inconsistente dos “tenentes”, que haviam vacilado entre a direita e a esquerda. Estávamos agora diante de um projeto “modernizador”, que partia da ideia de que, tanto a distribuição equitativa da renda como a convivência democrática, somente são alcançadas nas fases superiores do desenvolvimento. Assim, havia antes que conhecer as dores do parto da “acumulação primitiva”. Para essa gente, o desenvolvimento é um processo de domesticação da sociedade, requer o exercício de um poder autoritário. Enfim, era a vitória da doutrina da modernização tutelada. As pessoas que pensam assim são alérgicas ao debate aberto; sem que o percebam pensam em revólver quando ouvem falar de intelectual.

Nossos debates, agora, se realizavam de preferência no edifício da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), onde eu trabalhava na preparação de um seminário sobre os primórdios dessa instituição. Com frequência saíamos para perambular pelas margens do rio Mapocho. Havia sempre novos participantes em nossas reuniões. Alguns vinham para respirar, sufocados pelo clima de repressão criado no Brasil, mas logo se impacientavam e preparavam o regresso. Outros haviam escapado à perseguição e exploravam a possibilidade de encontrar um abrigo. Em verdade, a quase totalidade partia do princípio de que “a coisa em breve melhorará”, viabilizando o regresso. Fernando Henrique Cardoso insistia em que era necessário encontrar ou abrir espaço para a luta dentro do Brasil. Alguma forma de intelligentsia independente teria de sobreviver, se desejávamos evitar que o obscurantismo aprofundasse as suas raízes. Não nos escapava que os novos donos do poder tudo fariam para cooptar essa intelligentsia, dificultando o mais possível a sobrevivência dos renitentes. A tentativa de Fernando Henrique Cardoso de voltar à universidade, de onde seria finalmente expelido, e a posterior criação do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) inscrevem-se nessa linha. Eu não desaprovava, mas sentia que não seria este o meu caminho. Minha opinião era que deveríamos instalar no exterior antenas captadoras e transmissoras, a fim de alimentar de ideias as redes de trabalho intelectual independente que lograssem sobreviver no país. Lembrava-me dos versos de Juan Ramón Jimenez, coração, cabeça, nos ares do mundo.

Sentia-me que mais uma vez viria a prevalecer em mim a vontade de andar sozinho, de vagabundar como um lobo solitário. Respeitava aqueles que se organizavam para sobreviver e pensar com independência no Brasil. Mas também sabia o importante que era observar de perto o que se passava no vasto mundo, sem o que tenderíamos a cair no isolamento e a correr o risco de ficar prisioneiros de uma visão exterior concebida para reforçar nossa dependência. Era necessário acompanhar de perto o que se passava nos Estados Unidos, em cujo campo gravitacional estávamos inseridos. Isso sem desconhecer que também era necessário manter contactos em várias áreas da América Latina e, no possível, instituir mecanismos de ajuda mútua.

(FURTADO, Celso. Os Ares do Mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991: 19 - 23)

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